O Cortex é utilizado pela Guarda Portuária no Porto de
Santos. O Termo de Adesão para a implementação do sistema foi assinado em
dezembro de 2021
O Córtex, uma
poderosa ferramenta de inteligência já em uso mantida e gerida pelo Ministério
da Justiça e Segurança Pública (MJSP), permite monitorar pessoas e veículos nas
ruas de diversos municípios e rodovias de todo o país em tempo real sem
precisar registrar a motivação da consulta. Isso significa que pessoas podem
ser acompanhadas sem prévia análise do Judiciário e fora de inquéritos
policiais.
Fontes que falaram
sob reserva e dados obtidos por Lei de Acesso à Informação (LAI) indicam que 55
mil usuários civis e militares têm acesso ao sistema em mais de 180 órgãos públicos
no país. Procurado, o MJSP reconheceu à Agência Pública que os milhares de usuários
civis e militares do sistema não estão obrigados a explicar o motivo da escolha
de seus "alvos".
"Não há
necessidade de se motivar a consulta [no Córtex], haja vista se tratar de
consultas visando atividades de segurança pública (que é o objetivo do
sistema). Porém, caso haja suspeita de irregularidades nas consultas, deve
haver atuação da auditoria", disse o MJSP.
O MJSP se recusou a
dizer quantas pessoas e veículos já foram vigiados por meio do Córtex. Mas,
conforme divulgado pelo próprio ministério em resposta a pedido de LAI, um total
de 360 mil "alvos" já haviam sido "identificados" entre
2019 e janeiro de 2022.
Entre os milhares de
usuários do sistema, há membros das Forças Armadas, policiais civis, militares
e federais, agentes penitenciários, integrantes do Ministério Público,
bombeiros, guardas civis e até servidores de órgãos de fora do Sistema Único de
Segurança Pública (SUSP).
Sem um controle
independente ou interno eficaz sobre seu uso no dia a dia, o Córtex abre espaço
para vigilância indiscriminada de qualquer cidadão, seja ele um manifestante,
um membro de movimento social ou de organizações da sociedade civil, uma pessoa
pública ou autoridade, adversários políticos ou mesmo familiares e cônjuges de
agentes com acesso ao sistema.
A portaria que
regulamenta o uso do Córtex exige que os órgãos com acesso realizem auditorias
e enviem relatórios mensais sobre o uso, mas apenas 62 relatórios de auditoria foram
registrados em mais de quatro anos de uso intenso do programa, informou o MJSP.
Questionado sobre os
poucos relatórios, o MJSP argumentou que "puxou para si a responsabilidade
em realizar relatórios de auditoria, sendo que todos os processos de auditoria
do órgão estão sendo revisados. Portanto, os 62 relatórios produzidos foram
todos no âmbito do MJSP".
Uma dessas
auditorias, iniciada em 2023 dentro do MJSP, abandonou a ideia de revisar o uso
do sistema durante o governo Bolsonaro.
'Cerco eletrônico'
O sistema de
controle e vigilância se vale, entre outras informações, de imagens captadas em
tempo real por 35,9 mil câmeras espalhadas por lugares públicos em todo o
Brasil: rodovias federais, ruas e avenidas urbanas, entradas e saídas de
estádios de futebol, entre outros pontos. O Córtex mantém uma funcionalidade
chamada "cerco eletrônico", que serve para monitorar em tempo real
veículos por ruas e avenidas pelo país a partir da "leitura" das placas
dos carros.
Além disso, "as
bases de dados internalizadas no Córtex" incluem outros dados sensíveis, como
a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), que contém vencimentos salariais
de milhões de pessoas empregadas no Brasil; o Cadastro do Sistema Único de
Saúde (CADSUS), com dados sigilosos de pacientes do SUS; e informações não
especificadas sobre autoridades em geral, qualificadas como Pessoas Expostas
Politicamente (PEPs).
Embora seja o
criador, coordenador e mantenedor da plataforma, o MJSP disse à reportagem que
não cabe à pasta controlar o acesso das consultas dos "alvos" pelos
outros órgãos públicos que usam o Córtex. Segundo o próprio ministério, os
"alvos" do Córtex podem ser vigiados por tempo indeterminado.
Documentos revelam
ainda que o MJSP descobriu pelo menos um caso de usuário que fez 1 milhão de
pesquisas no Córtex em um único dia, o que sugere o uso de robôs para a extração
de dados sensíveis.
Nesse ponto, outro
documento do MJSP registra a suspeita da presença de "laranjas" no sistema,
com pessoas sem qualquer ligação com órgãos de segurança pública operando o Córtex.
Suspeitas dessa natureza já foram tratadas anteriormente em reportagens do site
The Intercept Brasil e da revista Crusoé.
Servidores do MJSP
chegaram a discutir a criação de "um alerta quando o policial rastrear o veículo
da esposa, considerando os crimes de violência doméstica" no Brasil.
A preocupação é que
os 55 mil usuários do sistema possam vigiar em tempo real seu cônjuge sem
explicar a necessidade, quem ordenou o monitoramento, qual foi o tempo de sua
duração nem o resultado da vigilância.
Entre os documentos
do MJSP, aparece a menção à possibilidade de enquadrar esse tipo de uso ilegal
do programa, chamada pela equipe do ministério de "rastreio
(cônjuge)".
First Mile x Córtex
O MJSP reconheceu à
reportagem que, além das imagens de câmeras de rua, o Córtex dá acesso a dados
de veículos, cadastros de pessoa física na Receita Federal, cadastros de embarcações
e condutores, restrições judiciais e base nacional de carteiras de habilitação.
O monitoramento do
trânsito de veículos e pessoas se assemelha às capacidades do programa First
Mile, foco de um escândalo na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) após a descoberta
de que ele consegue acompanhar, em tempo real, usuários de telefones celulares.
O Córtex acompanha
veículos e pessoas em vez de telefones, mas o efeito prático é semelhante: os usuários
têm a capacidade de saber onde e quando uma pessoa esteve ou por quais ruas e
avenidas passou ou costuma passar, bastando reconstituir seu trajeto por meio
das câmeras.
Consultas ao sistema
podem ser feitas pela placa do carro a partir das milhares de câmeras instaladas
em ruas, avenidas e rodovias que conseguem "ler" os caracteres das
placas e indicar exatamente por onde o veículo passou ou costuma passar em
determinado dia ou hora.
O sistema consegue
vigiar pessoas e veículos "com ou sem restrições" 24 horas por dia,
sete dias por semana. Ele também tem sido utilizado por órgãos públicos
municipais e estaduais que têm firmado Acordos de Cooperação Técnica (ACTs) com
o MJSP.
Parcerias com governos e prefeituras
Até março de 2023, o
MJSP havia assinado 184 ACTs em todo o país — o que, em muitos casos, deu
acesso ao Córtex para guardas civis e servidores de órgãos fora do Sistema Único
de Segurança Pública.
Para que as
prefeituras, governos estaduais e outros órgãos tenham acesso ao sistema, basta
que deem uma "contrapartida" — o acesso a bases de dados que eles já
possuem.
ACTs obtidos via LAI
pela reportagem mostram que prefeituras alimentam as bases do Córtex com dados
diversos, como informações "em tempo real da bilhetagem dos ônibus",
incluindo "CPF e Nome [dos passageiros], Linha e Prefixo [dos ônibus],
Data e Hora da Leitura [dos cartões de embarque], Latitude e Longitude [dos
ônibus em trânsito]".
Herdado do governo
de Michel Temer (2016-2018), quando ainda operava pontualmente, o Córtex passou
a ser usado em larga escala durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro
(2019-2022), nas gestões dos ex-ministros da Justiça Sérgio Moro (2019-2020),
André Mendonça (2020-2021) e Anderson Torres (2021-2022).
Um total de 108
órgãos municipais e estaduais, como secretarias de Fazenda, de Segurança Pública
e de Trânsito, têm acesso ao Córtex por meio de APIs (em inglês, Application Programming
Interface), uma funcionalidade que permite a integração de sistemas de informação.
A Pública apurou
que, durante o governo Bolsonaro e até março de 2023, também detinham a
ferramenta API no Córtex: o setor de inteligência do Exército, o Centro Gestor
e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam), ligado ao
Ministério da Defesa, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e o
Ministério Público Federal (MPF), entre outros órgãos.
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Todos os 49 órgãos
que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) também possuem
acesso ao Córtex, incluindo a Abin, a Polícia Federal (PF), a Polícia
Rodoviária Federal (PRF) e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI).
No atual governo
federal, o sistema segue em expansão, para formar uma plataforma ainda mais poderosa,
denominada Orcrim (Sistema Nacional de Inteligência para Enfrentamento ao Crime
Organizado), na qual o Córtex seria inserido como apenas uma das peças.
Porto de Santos
O Cortex é utilizado
pela Guarda Portuária (GPort) no Porto de Santos. O Termo de Adesão para aimplementação do sistema foi assinado em dezembro de 2021.
- A reportagem traz
um vídeo com uma entrevista com o professor de Direito Luiz Augusto D’Urso
Fonte: UOL - A reportagem foi produzida pela Agência Pública e publicada em parceria com UOL
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