Polícia Federal em patrulha no âmbito da operação GLO Foto: Tiago Queiroz/Estadão - 27.02.24 |
Facção apostou na exportação de droga por meios ilegais no Porto de Santos, no litoral paulista
O Primeiro
Comando da Capital (PCC), maior organização criminosa brasileira, tem expandido
o envio de cocaína para a África Ocidental para tentar, a partir de lá,
diversificar as rotas para diferentes regiões da Europa, onde o grama da droga
pode chegar a US$ 85 (R$ 455, na cotação atual).
Em países vizinhos ao Brasil, como Colômbia, Peru e
Bolívia, a mesma quantidade é comprada de fornecedores da facção paulista por
apenas US$ 1 (R$ 5,35).
Por
que o PCC vende mais cocaína para a África e quanto lucra em cada região?
Relatório identifica atuação da facção no tráfico internacional
de drogas para países africanos. Senegal, Nigéria, Gana e Serra Leoa são alguns
dos destinos
Em 2022, foram apreendidas 24 toneladas de cocaína
na África Ocidental, patamar sem precedentes. Para se ter ideia da influência
do PCC, entre os países dessa região, apenas Senegal estava entre os 10
principais destinos do pó apreendido em portos brasileiros em 2018. A partir do
ano seguinte, Nigéria, Gana e Serra Leoa também figuraram na lista, em fenômeno
que tende a crescer ainda mais.
Esses são algumas das informações reunidas pelos
pesquisadores Gabriel Feltran, Isabela Vianna Pinho e Lucia Bird Ruiz-Benitez
de Lugo no relatório Ligações Atlânticas: o PCC e o tráfico de cocaína entre o
Brasil e a África Ocidental, publicado pela Iniciativa Global Contra o Crime
Organizado Transnacional (Gitoc, na sigla em inglês) e traduzido recentemente
para o português.
Conforme o material, o grama de cloridrato de
cocaína importado pelo PCC de países produtores sob o valor de US$ 1 chega a
custar US$ 35 (R$ 187) no mercado interno brasileiro – o Brasil é o 2º maior
consumidor de pó do mundo, atrás dos Estados Unidos.
Na África Ocidental, o valor da mesma quantidade de
cocaína salta para US$ 45 (R$ 240), enquanto em certas regiões da Europa atinge
US$ 85. Quanto mais droga chega até lá fora, portanto, maior o lucro da facção
com o tráfico internacional.
Os pesquisadores apontam que o PCC entendeu isso rápido, e intensificou o envio de cocaína a partir da metade da década passada, com avanço significativo sobre o Porto de Santos, o maior do hemisfério sul, e maior consolidação nas fronteiras do Brasil com Bolívia e Paraguai após a morte do narcotraficante Jorge Rafaat (2016), considerado até então o “Rei da Fronteira”. Facção apostou na exportação de droga por meios ilegais no Porto de Santos, no litoral paulista.
A partir daí, o tráfico internacional de drogas
praticado pela facção deslanchou, com o PCC se aproximando inclusive de máfias de
outros países, como a italiana ‘Ndrangheta, e consolidando a “atuação de ponta
a ponta”, algo característico de grupos de espectro mafioso.
“O Brasil desempenha agora papel proeminente e
crescente na logística do tráfico de cocaína latino-americana através da África
Ocidental, com o PCC como coordenador”, afirmam os pesquisadores no documento.
A atuação da facção, complementam, remonta à dos cartéis mexicanos, tidos como espécies
de “guardiões da cocaína” que entra nos Estados Unidos.
O material reforça informações citadas no Relatório
Mundial sobre Drogas 2023 pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e
Crime (UNODC, na sigla em inglês), que deu destaque para o “crescente tráfico
de cocaína” no continente africano.
Caminhos
da Cocaína
PCC lucra US$ 1 bilhão ao ano segundo o MP/SP; tráfico internacional é considerado carro chefe Infográfico - Estadão |
“A maior parte da cocaína na África é apreendida
perto da costa. A região, em particular o Oeste da África, é usada como ‘área
de transbordo’ para cocaína proveniente da América do Sul destinada à Europa”,
diz o documento da ONU, que também destacou como as facções impulsionam outros
tipos de crime, como o desmatamento na Amazônia.
Para tentar frear o tráfico, o Porto de Santos, por
exemplo, determinou nos últimos anos que contêineres com destino à Europa e
África passassem obrigatoriamente por scanners. Mais recentemente, como mostrou
o Estadão, países de Ásia e Oceania também começaram a contar com essa medida
no porto, em esforço para evitar possíveis rotas em ascensão.
Autoridades brasileiras afirmam que foi ampliada a
interlocução com mais portos internacionais, principalmente da Europa, para melhorar
o entendimento de onde as drogas estavam escondidas e tentar dificultar o envio
de remessas para fora.
O que faz o PCC ampliar rotas para a África? Carro
roubado é trocado por cocaína na fronteira O que faz o PCC ampliar rotas para a
África?
Ainda é difícil saber ao certo o que levou o
Primeiro Comando a investir mais nas rotas pela África para chegar até a Europa,
uma vez que esse movimento é multifatorial. Mas os pesquisadores apontam que a
facção costuma se reorganizar para driblar medidas das autoridades.
“Há interceptações telefônicas em operações
policiais indicando que traficantes consideram o scanner (para a tomada de
decisão)”, diz a pesquisadora Isabela Vianna Pinho, doutoranda pela Universidade
Federal de São Carlos (Ufscar). “Mas pode haver vários fatores, como o PCC se
expandindo e criando alianças com outras máfias para crescer para outros
países.”
Apontado como um dos principais responsáveis por
aumentar a expressão internacional do PCC na última década, Gilberto Aparecido
dos Santos, o Fuminho, foi preso em 2020 em Moçambique.Gilberto Aparecido dos Santos, o Fuminho, foi preso em 2020 em Moçambique. A hipótese é de que ele
estava na África com o objetivo de construir uma rede de distribuição na Europa
e, assim, se livrar do pedágio cobrado pela ‘Ndrangheta e pela máfia sérvia.
Como estratégia local, pesquisadores afirmam que
tem havido maior diversificação dos portos brasileiros usados para enviar para
o exterior, com destaque para o de Paranaguá (PR), o de Barcarena (na região
metropolitana de Belém) e o de Salvador. Em 2020 e 2021, menos da metade das
apreensões em portos brasileiros ocorreu em Santos, o que destoa de anos anteriores,
diz Isabela.
Em fase final de pesquisa de doutorado sobre o
tráfico no Porto de Santos, a pesquisadora afirma que o foco crescente do PCC
no mercado internacional tem reverberado não só na África Ocidental, como em
outras regiões do continente.
De 2016 a 2023, entre os dez principais países de conexão
da cocaína apreendida no Porto de Santos, Marrocos aparece em 4º lugar,
enquanto Senegal e Nigéria também figuram na lista. Já entre os principais
destinos (o que não determina que a droga necessariamente será consumida por
lá) estão Nigéria e Gana.
Ainda com o destaque para os países africanos,
ambas as listas são lideradas por países da Europa, como principalmente Bélgica,
Holanda e Espanha. A principal razão é que, além de os dois estarem em pontos
estratégicos, são locais que contam com portos bastante relevantes no contexto
europeu, com para o de Antuérpia.
Carro
roubado é trocado por cocaína na fronteira
Em outro trecho do relatório, pesquisadores apontam
que “provas obtidas a partir do trabalho de campo realizado em países da rede Brasil-África
Ocidental têm destacado como a cadeia de valor frequentemente começa não com
cocaína, mas com veículos roubados ou de segunda mão, trocados por drogas nas
fronteiras sul-americanas”.
Na fronteira com a Bolívia, uma Toyota Hilux
roubada, por exemplo, é cotada em 5 quilos de cloridrato de cocaína, aponta o relatório.
Um carro convencional, a 3 quilos.
“Os veículos brasileiros roubados são o pagamento
para os distribuidores de cocaína na Bolívia, na Colômbia e no Paraguai, uma
vez que os carros estrangeiros de luxo são vendidos localmente por preço muito superior
ao da cocaína. Para os ladrões de carros brasileiros, passa-se exatamente o
contrário: a cocaína rende muito mais do que a revenda de carros roubados no seu
país”, descrevem os pesquisadores.
O tráfico internacional se dá, portanto, em meio à
coordenação do crime organizado com outras práticas ilícitas. “O PCC não
procura estabelecer controle exclusivo nos territórios sob a sua influência.
Mesmo nas áreas periféricas de São Paulo, onde o grupo
é mais forte, os indivíduos participam no tráfico de drogas independentemente
do PCC e não são obrigados a dividir seus lucros com o grupo”, diz o relatório.
Ao mesmo tempo, o relatório aponta que todos esses
grupos devem cumprir o regime regulamentar imposto pelo PCC nos territórios. É
uma dinâmica observada em algumas regiões da Amazônia, por exemplo, em que
autoridades apontam que a facção paulista chegou a atuar como “síndico do
garimpo ilegal”, a exemplo do que ocorreu no Território Indígena Yanomami.
Como mostrou o Estadão no último ano, a região tem
sido marcada por sobreposição entre o narcotráfico e crimes ambientais, em
prática conhecida como “narcogarimpo”. Muitas vezes, diferentes grupos
criminosos, ainda que com atuações distintas, se valem de uma mesma rota e uma
cadeia de proteção similar para praticar seus crimes em conjunto.
A região tem sido marcada por uma sobreposição
entre o narcotráfico e crimes ambientais, em prática conhecida como “narcogarimpo”.
“O PCC busca expansão para pontos importantes da
cadeia, sejam logísticos, de infraestrutura, fronteiras e portos. Isso não
implica necessariamente um controle armado, mas em certo poder nesses locais,
em que eles contam com redes de pessoas que possam pagar para fazer
determinadas atividades”, diz Isabela. Essa atuação difere, por exemplo, à do
Comando Vermelho (CV), facção carioca considerada mais focada no domínio
territorial armado.
Com três décadas de história, o PCC foi fundado em
um presídio do interior de São Paulo por um grupo de oito presos e agora é descrito
pelos pesquisadores como o “ator mais poderoso do mercado interno de cocaína no
Brasil, com cerca de 40 mil membros e centenas de milhares de aliados, bem como
o mais importante fornecedor da cocaína que circula através da África Ocidental”.
O relatório aponta que a “análise do PCC tem ficado
aquém do seu desenvolvimento, não conseguindo frequentemente compreender o seu
alcance global”. Em 2021, a inclusão do PCC no regime global de sanções contra
drogas do Tesouro dos EUA – a primeira designação de uma rede criminosa
brasileira feita pelos Estados Unidos – sinalizou maior reconhecimento da sua
influência internacional. O desafio, agora, é combater de forma mais efetiva o
avanço da organização criminosa.
Fonte: Estadão
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários publicados não representam a opinião do Portal Segurança Portuária Em Foco. A responsabilidade é do autor da mensagem. Não serão aceitos comentários anônimos. Caso não tenha conta no Google, entre como anônimo mas se identique no final do seu comentário e insira o seu e-mail.