O PCC
mantém laços com grupos mafiosos como o clã Šaric, da Sérvia, e a 'Ndrangheta,
da Calábria, na Itália
Era dia de folga, e os dois investigadores da
Polícia Civil voltavam desarmados de uma partida de futebol quando cruzaram com
um Chrysler Stratus cor de vinho na Marginal Pinheiros, em São Paulo. O carro,
incomum à época, era o mesmo do sócio de um dos criminosos do momento: Marcos
Willians Herbas Camacho, o Marcola, que em pouco tempo passou de batedor de
carteira no bairro central do Glicério, onde nasceu, para um dos maiores
assaltantes de banco do país. O sedã encostou diante de um telefone público e
dele desceu um homem alto e narigudo. Como os policiais só tinham visto Marcola
por fotografias, não o reconheceram de pronto, mas o nariz avantajado acendeu
um alerta. Ao ver a cena, o motorista do veículo deu fuga, e deixou o companheiro
ali, à mercê dos agentes.
Marcos Willians Herbas Camacho (Marcola) - Foto: Reprodução |
— Eles prenderam o Marcola no dedo, e ele está na
cadeia até hoje. Foi uma casualidade, calhou de desconfiarem — lembra o
procurador de Justiça Márcio Sérgio Christino, autor de “Laços de Sangue, a
história secreta do PCC”.
Preso desde junho de 1999, Marcola é considerado a
autoridade máxima da facção paulista Primeiro Comando da Capital (PCC),
presente hoje em todo o Brasil e na América Latina, além dos Estados Unidos e
de parte da Europa e do Oriente Médio, segundo o Grupo de Atuação Especial de
Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público paulista. Com cerca
de 42 mil integrantes devidamente batizados, a organização baseia seus membros
em pelo menos 24 países, com tentáculos que, se incluída a distribuição de
droga para intermediários, alcançam os cinco continentes.
Atualmente, o PCC soma o dobro de membros fora de
São Paulo, onde foi fundado há mais de três décadas, além de mais de mil
representantes no exterior, que estreitam laços com grupos mafiosos como o clã
Šaric, da Sérvia, e a 'Ndrangheta, da Calábria, na Itália. O faturamento
estimado em no mínimo US$ 1 bilhão ao ano vem, na maior parte, justamente do
tráfico internacional de entorpecentes, que já responde por 80% do lucro da
facção, cujo surgimento, ascensão e expansão além-fronteiras serão tema de uma
série especial em três capítulos, que começa a ser publicada no último domingo
no GLOBO.
Veja
a Comparação:
Massacre
do Carandiru
O PCC foi formado em 31 de agosto de 1993, na Casa
de Custódia de Taubaté, conhecida como Piranhão, com o discurso de combater a
opressão no sistema prisional e evitar novos massacres como o do Carandiru,
ocorrido um ano antes. Teve entre os oito idealizadores Mizael Aparecido da
Silva, criador do primeiro estatuto da organização; Idemir Carlos Ambrósio, o
Sombra, seu primeiro chefe; César Augusto Roriz da Silva, o Cesinha, cuja
assinatura era a decapitação de rivais; e José Márcio Felício, o Geleião,
inventor da sigla PCC. Marcola, que mais tarde tomaria o controle do grupo, não
estava entre os fundadores.
Rebelião do PCC no presídio - Foto: Reprodução |
Um jogo de futebol entre o “Comando Caipira”,
detentos de cidades do interior, e o “Comando da Capital”, presos do município
de São Paulo, marca a origem da facção. Depois de uma briga entre os times com
duas mortes, os rivais pactuaram um acordo de proteção com medo de represálias.
O grupo se manteve oculto até que seus membros começaram a ser transferidos
para outras cadeias paulistas e passaram a recrutar milhares de integrantes.
O pretexto para a fundação dessa espécie de
sindicato para combater supostos abusos do Estado foi o Massacre do Carandiru,
mundialmente conhecido como a maior chacina de presos da história do país, com
111 mortos — episódio que consta, inclusive, no estatuto original da quadrilha.
Um dia antes da eleição de 1992, para conter uma briga de facão e o corre-corre
de presos na Casa de Detenção de São Paulo, o Carandiru, policiais militares de
batalhões especiais, que pouco conheciam a disposição das celas, entraram fortemente
armados no pavilhão sem energia elétrica e soltaram os cachorros em cima da
massa. Uma testemunha narraria que os PMs se aproximaram batendo em seus
escudos e gritando: “A morte chegou, a morte chegou”.
Naquele tempo, facções estruturadas como as atuais
não existiam, apenas grupos isolados que dominavam regiões da cidade. Há 35
anos voluntário no sistema prisional paulista, o médico Drauzio Varella havia
acabado de deixar o Carandiru quando a cadeia “virou”. Ele diz que os presídios
eram “uma panela de pressão”, sempre prestes a explodir, mas que desavenças do
tipo eram comuns à época e passíveis de serem contidas.
Dr. Drauzio Varela - Foto: reprodução O Globo |
— O que se fazia para controlar? Trancava a cadeia,
cortava a água, a luz e as refeições, e deixava os presos lá à noite. Eles
faziam bagunça e, no dia seguinte, vinha alguém negociar. Aquilo teria acabado
sem nenhum problema. Só que era véspera de eleição, e um idiota deu a ordem
para a PM entrar e dominar a rebelião a qualquer preço — recorda o médico.
A inaptidão do Estado, para o promotor Lincoln
Gakiya, do Gaeco, foi determinante para o surgimento e expansão da maior
organização criminosa do Brasil. Há 20 anos no combate à facção, Gakiya já foi
alvo de mais de um plano de execução por parte do PCC:
— Sem sombra de dúvidas, houve a omissão do governo
estadual aqui de São Paulo por décadas. Primeiro porque negligenciou o sistema
prisional, com as más condições de cumprimento de pena, penitenciárias lotadas,
o episódio do Carandiru... Mas principalmente por ter negado a existência da
facção por quase uma década.
A
Expansão Global
Se, antes, o mote do grupo era, supostamente, a
ajuda aos presos e seus familiares, financiando advogados e viagens de ônibus
para as visitas às cadeias no interior, não demorou para que o cenário mudasse.
O foco no faturamento com atividades criminosas variadas coincide com a
ascensão no início dos anos 2000 de Marcola, que apostou as fichas no que viria
a se tornar a principal fonte de renda do bando: o tráfico de drogas.
A jogada rendeu frutos e, nas últimas duas décadas,
o PCC não apenas reforçou a hegemonia nos presídios paulistas, como também
expandiu seus braços para todo o território nacional, controlando em múltiplos
pontos a venda de entorpecentes. Mais recentemente, sua última e mais ambiciosa
investida foi fincar raízes na Europa e estruturar o tráfico para fora do
Brasil. O alcance internacional chamou a atenção do governo americano. Em 2021,
o PCC foi incluído em uma lista de bloqueios da Agência de Controle de Ativos
Estrangeiros (OFAC, na sigla em inglês), instituição do Departamento de Tesouro
dos Estados Unidos.
A história da internacionalização da facção começa
com seu estabelecimento em Santos, não por acaso a cidade que abriga o maior
porto do Brasil. Em meados dos anos 2000, a organização ainda não era
hegemônica na região e disputava alguns pontos de venda de droga com Ronaldo
Barsotti, o Naldinho. Preso em 2005 e libertado em 2009, ele desapareceu e
nunca mais foi visto. O sumiço, informalmente atribuído ao PCC, abriu
definitivamente o espaço para o grupo controlar o varejo do tráfico no litoral
paulista.
— O PCC já tinha contato com pessoas do porto:
estivadores, operadores de scanner e outros trabalhadores, que eventualmente
moravam nas comunidades em que eles traficavam — diz Gabriel Patriota, pesquisador
do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP).
A
Ascensão do PCC
Patriota destaca que a entrada da facção no ramo do
atacado só se consolidou na década seguinte. Embora há tempos os navios que
saíam de Santos fossem usados no tráfico internacional de cocaína, a chegada do
PCC profissionalizou o esquema.
Até então, marinheiros recrutados por traficantes
em bares e estabelecimentos na orla eram cooptados para levar droga na bagagem
pessoal ou em sacolas de compra, um improviso que permitia levar quantidades
não maiores do que 30kg. O PCC consolidou o transporte da droga dentro dos
contêineres de carga, fazendo com que a escala do tráfico em Santos deixasse de
ser medida em dezenas de quilos e passasse às centenas, com apreensões de mais
de uma tonelada.
Para Patriota, o PCC soube aproveitar uma
oportunidade que Naldinho não tinha estrutura para bancar. Quadrilhas como os
grupos eslavos e da Itália já viam Santos como uma rota promissora para obter
cocaína sul-americana, mas faltava encontrar o parceiro ideal. Segundo a
criminologista italiana Anna Sergi, professora da Universidade de Essex
(Inglaterra), o contato com a organização brasileira não foi só uma questão de
oportunismo. Os traficantes europeus sabiam que o PCC tinha capacidade de
operar nos portos porque, essencialmente, também funciona como uma máfia.
— Essa palavra tem um significado muito específico.
Ela define grupos que têm interesse em acumular lucros por meios ilegais e
legais, bem como em ganhar poder e governança extraterritorial — afirma Sergi.
Em paralelo à expansão internacional, o grupo
buscou a fachada de atividades lícitas, inclusive de prestação de serviços
públicos, para lavar o dinheiro proveniente das atividades criminosas — mais
uma prática comum às máfias. Em abril, o Ministério Público paulista denunciou
o elo da facção com o Estado em cidades de São Paulo, estabelecido há quase uma
década. Entre outros métodos, a facção usava duas das maiores empresas de
ônibus da capital para travestir de legalidade a renda obtida com o tráfico de
drogas. O PCC, como apontam diferentes investigações, está entranhado no
mercado formal, na política e até no Judiciário.
— O processo de expansão do PCC segue cada vez mais
potente, com muito mais dinheiro envolvido, com a mesma ideologia antissistema
bastante viva. Nos últimos anos, houve uma ampliação gigantesca de capacidade
de operação, sobretudo nos mercados transnacionais, com cocaína na frente, mas
também ouro, armas e todos os tipos de lavagem de dinheiro — enumera Gabriel
Feltran, pesquisador em sociologia do crime no Centro Nacional de Pesquisas
Científicas da França (CNRS) e autor de “Irmãos: Uma história do PCC”.
Navios,
Veleiros e até Mergulhadores
Os primeiro método que o PCC usou para despachar
cocaína em grandes quantidades para o exterior é chamado de rip-on/rip-off. A
estratégia consiste em arrombar contêineres e recrutar pessoas carregando
grandes quantidades da droga em mochilas para despejá-la rapidamente no
compartimento, que é fechado com um lacre clonado para passar despercebido pela
alfândega. Na Europa, os parceiros internacionais do PCC conseguiam resgatar a
droga no porto de destino.
De lá pra cá, para despistar a fiscalização, a
operação foi aperfeiçoada com diferentes estratégias, como a ocultação da droga
entre sacas de grãos, o emprego de veleiros e até a contratação de
mergulhadores profissionais, que ocultam a carga no casco de navios. O mergulho
em portos é perigoso especialmente em lugares como Santos, onde a água é muito
turva. Em 2022, um brasileiro recrutado pelo PCC morreu no porto de Newcastle
(Austrália) ao mergulhar para tentar recuperar uma carga de cocaína. O
incidente despertou autoridades também para a entrada da facção na rota
Ásia/Pacífico, que paga mais pela cocaína no varejo.
A diversificação das modalidades de despacho da
droga é apontada como uma das possíveis causas para a queda nas apreensões em
Santos desde 2019, quando o índice atingiu um pico após a Receita Federal
tornar obrigatório o escaneamento por raio-X de qualquer carga destinada à
Europa. Outra hipótese é que a cocaína esteja saindo mais de outros portos, como
Paranaguá (PR), Salvador (BA) e Belém (PA).
— Em várias apreensões recentes em outros portos,
percebemos, inclusive, o envolvimento de criminosos da Baixada (Santista)—
destaca Daniel Coraça, chefe da Delegacia de Santos da PF.
A droga remetida pelo PCC segue para dezenas de
portos diferentes, mas alguns com mais frequência, como Le Havre (França),
Hamburgo (Alemanha), Roterdã (Holanda) e, sobretudo, Antuérpia (Bélgica). São
vários os elementos que contribuíram para a maior facção brasileira conquistar
mercados internacionais, segundo os especialistas, e um deles foi a capacidade
de criar uma marca. A sigla PCC, frisa Anna Sergi, é hoje quase tão conhecida pelos
criminologistas quanto nomes dos cartéis mexicanos e colombianos históricos, atualmente
mais fragmentados.
Outro fator é a reputação de eficiência que o grupo
começou a construir. Empregando menos violência e mais organização, o PCC
ganhou a confiança de gângsteres mundiais, que não podem recorrer à Justiça
quando um negócio dá errado. Esse processo, que inclui formas mais elaboradas
de lavar dinheiro, também fez parte da evolução de outras quadrilhas pelo
mundo.
— Grupos italianos, como a 'Ndrangheta e a Cosa
Nostra (máfia siciliana), passaram por essa transformação. Reduziram a
violência e emergiram mais profissionais, atuando em crimes de colarinho branco
e outros mais tradicionais, como extorsão — explica Sergi.
Fonte: O Globo
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários publicados não representam a opinião do Portal Segurança Portuária Em Foco. A responsabilidade é do autor da mensagem. Não serão aceitos comentários anônimos. Caso não tenha conta no Google, entre como anônimo mas se identique no final do seu comentário e insira o seu e-mail.