Apreensões de droga em parte submersa dos barcos, de
fiscalização mais difícil, triplicam entre 2020 e 2023; ação militar freia
tráfico
Sob sol
escaldante, um grupo de cerca de 50 militares entra em um navio cargueiro para
nova inspeção no Porto de Santos, o maior do hemisfério sul. Ao longo de seis
horas, equipes se espalham pelos 12 andares da embarcação, em vistorias que
incluem de cães farejadores a mergulhadores atrás de carregamentos de drogas.
É justamente na
parte submersa dos navios que o Primeiro Comando da Capital (PCC), maior facção
criminosa do continente, tem escondido volume cada vez maior de cocaína para
driblar as autoridades. Os portos são a principal rota de saída do entorpecente
rumo a África e Europa.
O governo
federal editou, em novembro, um decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO),
que prevê ação militar em portos e aeroportos de São Paulo e Rio de Janeiro até
maio na tentativa de conter o narcotráfico. O Estadão acompanhou um dia de
trabalho da Marinha, além de ouvir autoridades envolvidas nas investigações.
Para Anderson
Pomini, presidente da Autoridade Portuária de Santos, “hoje a principal forma
utilizada pelos traficantes é a de fixar a droga no casco do navio”. Embora não
seja a modalidade com maior em quantidade de apreensões, o uso de “caixas de
mar” (sea chest - compartimentos localizados no casco) ganha força ante
estratégias mais tradicionais, como camuflar pacotes em meio a grãos em
contêineres.
No envio de
cargas para Europa e África, o tráfico via contêiner tem mais risco: a regra é
de que sejam vasculhadas por scanners logo na chegada aos terminais. Por isso,
o casco de navio se torna atrativo, pois é mais difícil de fiscalizar, embora
permita o envio de menos quilos por vez.
Ação conjunta de
Polícia Federal (PF), Receita Federal e
Marinha no início de 2023, por exemplo, apreendeu cerca de 290 kg de cocaína
achados no casco de navio carregado de celulose. Os traficantes usaram até
anilhas de academia para fixar os pacotes no recipiente. O barco, que ia para o
Porto de Martas, na Turquia, estava ancorado na área de fundeio do Porto de
Santos quando foi vistoriado.
As investigações
apontam que, em geral, os pacotes são levados aos navios de duas formas: por
pequenas lanchas, que se movimentam principalmente à noite; com luzes apagadas,
ou por mergulhadores, que saem de áreas de mata ou de embarcações mais afastadas.
Apreensões em casco triplicam e alcançam 1,68
tonelada
No último ano,
1,68 tonelada de cocaína foi apreendida em cascos de navios no Porto de Santos
por mergulhadores militares, mais do que o triplo do que os 483 quilos
interceptados em 2020, segundo balanço da Marinha obtido com exclusividade pelo
Estadão.
Dados da
Alfândega de Santos reunidos pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP mostram
como o tráfico submarino tem crescido. Em 2020, a proporção de droga achada em
cascos de navios era de 2,3% do montante. Em 2023, só até agosto, a fatia
saltou para 13,5%.
“São 24,6 km de
canal, 60 berços de atracação e mais 60 navios esperando lá na área de fundeio
(atracadouro). São 120 navios. Como fiscalizar isso?”, destaca Pomini.
“Precisaria de ao menos 250 mergulhadores, com lanchas próprias, equipamentos e
infraestrutura própria.”
A Guarda
Portuária (GPort) não tem mergulhadores, mas hoje há quatro profissionais da
Marinha em atuação. Em Santos, há efetivo extra de cerca de 400 militares por
conta da GLO. As equipes em atuação são trocadas continuamente pela Marinha.
“Entendemos que
os números (de efetivo) são acanhados, dado o tamanho do Porto de Santos, mas o
que procuramos fazer é utilizar informações de inteligência para atuar
pontualmente, mas de forma precisa”, diz o capitão dos Portos de São Paulo,
Marcus André de Souza e Silva.
O anúncio da
chegada dos militares, por ora, fez os traficantes abrirem mão da estratégia de
esconder cocaína dos cascos. A média passou de um mergulho a cada oito dias
para um mergulho diário. Apesar do aumento, a capacidade é limitada perto do
fluxo do porto.
Dos cerca de 30
navios que partem dos terminais diariamente, aproximadamente 10% são
vistoriados de alguma forma pela Marinha. As embarcações-alvo são escolhidas
com base em informações de inteligência. Entre elas, no máximo um recebe
vistoria mais minuciosa, com duração de 6 horas, como a acompanhada pelo
Estadão. A minoria tem a inspeção via mergulho.
Nos quatro meses
de GLO, houve duas apreensões mais expressivas de cocaína em Santos com ajuda
da Marinha: uma de 10 kg, localizadas junto aos corpos de dois tripulantes
estrangeiros de uma embarcação, e outra de 31 kg, escondidos em compartimento
no alto do banheiro de um navio.
Diante do avanço
da fiscalização, o crime organizado varia e sofistica as estratégias. “Antes,
mochilas com tabletes da droga eram simplesmente jogadas dentro de
contêineres”, diz Gabriel Patriarca, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência
da USP.
A cooperação com
outros órgãos, como PF, Receita e Guarda Portuária, é apontada pela Marinha
como central para o êxito na escolha dos alvos. A Polícia Civil também participa
de operações conjuntas.
A Autoridade
Portuária também aposta em uma estrutura de tecnologia, de R$ 140 milhões, o
que inclui drones subaquáticos, além do aumento do efetivo da Guarda Portuária.
A previsão é de que o plano seja executado no 2º semestre.
“O PCC é a
principal e talvez a única organização criminosa que atua aqui no Estado de São
Paulo e especificamente no Porto de Santos. A gente entende e acompanha isso
com trabalho efetivo de inteligência”, diz o capitão de Mar e Guerra Carlos
Eduardo Gonçalves Maia, chefe de Estado-Maior do Grupo Tarefa Santos da GLO.
Por ano, mais de
5 mil navios chegam a ficar atracados no porto, que se destaca pela exportação
de soja, açúcar e carne bovina. Os principais destinos das embarcações são Ásia
e Europa, também alguns dos locais de revenda de droga pelo PCC.
“Muitos
traficantes que atuavam na região (na venda local de drogas) e conseguiam
alguma forma de mandar drogas para fora acabavam fazendo duas coisas (tráfico
interno e para o exterior), mandando 100 kg, 200 kg por mês”, diz o promotor de
Justiça Silvio Loubeh, que atua no braço de Santos do Gaeco do Ministério
Público de São Paulo.
Investigações do
MP indicam que a facção paga de US$ 1,2 mil a US$ 1,4 mil (entre R$ 6 mil e R$
7 mil) pelo quilo de cocaína para fornecedores de países vizinhos, como
Colômbia, Peru e Bolívia. Na Europa, vende por cerca de € 35 mil.
Como mostrou o
Estadão, a estimativa é que o PCC envie de 4 a 5 toneladas de cocaína para
outros países por mês, em especial por meio dos portos. E, pelos cálculos do
MP, a facção lucra cerca de US$ 1 bilhão (quase R$ 5 bilhões) anuais, em
especial com a venda internacional de cocaína.
GLO inibe crime, mas combate em longo prazo
preocupa
De acordo com a
Marinha, nos quatro primeiros meses de operação, foram mais de 27 mil
abordagens em veículos, 7,4 mil fiscalizações em embarcações e 17,5 mil inspeções
em pessoas e bagagens.
Além disso,
foram inspecionados mais de 4,5 mil contêineres em cooperação com outros
órgãos, sendo apreendidas mais de 30 embarcações por irregularidades
administrativas. Outras 215 embarcações foram notificadas.
Para
pesquisadores ouvidos pelo Estadão, embora a GLO promova resultados imediatos,
o modelo abre dúvidas sobre o fôlego do combate ao crime no longo prazo. “Resta
saber como se dará a continuidade disso, porque a GLO não pode ser prorrogada
por tempo indefinido”, diz Ricardo Moura, do Laboratório de Estudos da Violência
da Universidade Federal do Ceará (UFC).
A expectativa é
de que a operação seja renovada pelo governo federal após maio, seu prazo
limite. “E essa expertise precisa ser incorporada às polícias”, acrescenta o
pesquisador.
Além disso, como
a GLO não inclui portos como o de Paranaguá (PR), por exemplo, que costuma ser
o 2º em apreensão de cocaína no País, há o risco de esses pontos entrarem no
foco dos bandidos. “Se há atuação forte em uma área, tem de pensar também nas
margens do território”, afirma Moura.
Como o Estadão
mostrou, o PCC testa alternativas para enviar a droga para o exterior. Uma das
tentativas, por exemplo, é viabilizar o Porto de Salvador como possível nova
rota, em aliança com a facção baiana Bonde do Maluco.
Segundo
relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, de 2022, grupos
criminosos no Brasil têm cada vez mais, buscado portos menores no Nordeste e no
Sul. O documento, que não cita quais terminais, aponta que a tendência era
vista antes da covid-19, mas se intensificou na pandemia.
A operação de
GLO em Santos, além disso, ocorre em paralelo à 3ª fase da Operação Verão,
desencadeada no começo do mês passado pela Polícia Militar na Baixada Santista,
após a morte de um policial da Rota. Alvo de denúncias, a incursão já resultou
em ao menos 47 mortes. O governo estadual tem negado irregularidades e afirmado
apurar as ocorrências.
Embora com
dinâmicas distintas, as operações têm o mesmo objetivo: combater o crime
organizado. Para Anaís Medeiros Passos, professora de Ciência Política na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), operações como as GLOs por vezes
repetem “fórmula fracassada” de combate ao tráfico.
Segundo ela, é
preciso envolvimento mais efetivo do governo federal para desarticular facções
e coordenar ações entre os Estados. “Se não houver coordenação permanente
interestadual e envolvendo os três níveis de governos sobre o tema, estamos
mais uma vez enxugando gelo”, defende.
A Polícia Civil
afirmou, em nota, que deflagrou as operações “Navegação Segura” e “Pérola do
Atlântico” na Baixada Santista, em outubro e novembro do ano passado, com apoio
de agentes da Marinha do Brasil e da Capitania dos Portos.
Um homem de 38
anos, procurado por tráfico de drogas, foi preso. Já um adolescente, de 15
anos, foi apreendido em flagrante por ato infracional equivalente à associação
criminosa.
“Quatro jet skis
produtos de furto foram recuperados e uma lancha com dados adulterados
apreendida, em Santos. Em Guarujá, quatro jet skis com sinais de irregularidade
e outros quatro sem documentação foram recolhidos”, afirmou.
Procurados pela
reportagem, Ministério da Justiça e Polícia Federal não falaram.
Fonte: Estadão - Por Ítalo Lo Re
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