Com GLO, Lula enviou militares para atuar contra o crime
organizado. Medida é vista com ceticismo por especialistas em segurança pública
Em resposta à
recente escalada da violência no Rio de Janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula
da Silva adotou a Garantia da Lei e da Ordem (GLO), dando aos militares o poder
para atuar em portos e aeroportos do Rio de Janeiro e São Paulo e combater o
crime organizado. A medida é controversa e especialistas são céticos em relação
ao real impacto desta ação.
A GLO instituída
por Lula fica em vigor até meio do ano que vem e coloca as Forças Armadas para
atuar em conjunto com a Polícia Federal e as polícias estaduais no combate à
criminalidade. Os militares poderão realizar prisões e conduzir revistas em
suspeitos, tendo, portanto, poder de polícia. Ao todo, 3,7 mil militares
participarão da operação.
Marinha e
Aeronáutica vão atuar nos portos de Santos (SP), do Rio de Janeiro (RJ) e de
Itaguaí (RJ), e nos aeroportos de Guarulhos (SP) e Galeão (RJ). Já o Exército
estará concentrado nas fronteiras dos estados do Paraná, Mato Grosso do Sul e
Mato Grosso, recebendo suporte da Polícia Rodoviária Federal.
A ação dá um
novo protagonismo aos militares no governo, depois de uma sequência de embates,
que incluiu a inatividade do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) nos atos
golpistas de 8 de janeiro e a posterior CPMI sobre o caso aberta no Congresso.
Em abril, o governo anunciou que reduziu a participação de militares da ativa
em cargos de comissão, cortando 200 militares.
Na campanha
eleitoral, Lula prometeu estabelecer novos parâmetros para a segurança pública
no país, com maior integração entre União, estados e municípios. E, em meados
de outubro, chegou a descartar o uso de GLOs durante o seu governo. No entanto,
poucos dias depois, voltou atrás e autorizou a missão.
"Esta
medida é mais do mesmo: colocar militares para fazer papel de polícia. Não há
nenhuma novidade", avalia a cientista política Anais Passos, da
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). A especialista diz que o
movimento do presidente sugere uma tentativa de apaziguar a relação com os
militares, além de sinalizar à população que algo está sendo feito na segurança
pública.
Para o
antropólogo Lenin Pires, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a GLO
deve ser usada apenas em casos excepcionais e sua banalização é perigosa.
"Os militares foram chamados para atuar por três motivos: tradição,
necessidade política de se colocar em sintonia com o governo e, como já
acontece há anos, para reforçar o caixa do Exército, cujo apetite é grande. A
GLO, em qualquer circunstância, deveria ser uma medida excepcional.
Banalizou-se a operação de Garantia da Lei da Ordem e sua eficácia é baixa,
quase nula."
"De fato
Lula havia dito que não faria GLO, é uma contradição. Mas ela é mais restrita e
vai acontecer só em portos e aeroportos. É fato que isso pode favorecer um
incremento no orçamento, mas não vejo isso como um espaço maior aos militares
na arena política. Embora as Forças Armadas possam cobrar algum tipo de fatura
nesse sentido, e isso depende do que foi negociado", analisa o cientista
político e especialista em segurança Eduardo Svartman, da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Batalha contra o crime organizado
Dados da Receita
Federal mostram que, entre 2016 e 2022, foram apreendidas 126 toneladas de
drogas em contêineres ou pares de navios que estavam prestes a deixar o país.
Somente neste ano já foram apreendidas 2,5 toneladas de drogas que tinham como
destino o exterior, de acordo com a Polícia Federal.
Pires questiona,
no entanto, a capacidade dos militares para atuar contra o crime organizado.
"Ainda que os portos sejam o principal ponto para a distribuição de drogas
para fora, há todo o problema relacionado às fronteiras. Sendo os militares
considerados os principais responsáveis pela proteção e guarda das mesmas, me
parece haver um déficit na demonstração da competência necessária para atuar em
qualquer outro âmbito. Deveria haver evidências de expertise das Forças Armadas
no que é de sua competência, para então ampliar o escopo de sua atuação na área
urbana", afirma.
Outro ponto em
aberto é como ocorrerá esse trabalho em conjunto. Apesar de o ministro da
Justiça, Flávio Dino, dizer que a competência das polícias estaduais, da
Polícia Federal e da Polícia Rodoviária Federal serão preservadas e que as
corporações atuarão em parceria com os militares, para Passos, falta ainda o
governo explicar com maior clareza como a relação entre as forças de segurança
nacionais e estaduais vão se relacionar.
"O maior
risco são as disputas entre as corporações, porque a GLO envolve pelo menos
dois níveis de governo, os estados e a federação. Quem vai mandar e quem vai
obedecer? Afinal, precisa ter liderança. Militares gostam de atuar quando tem o
comando da operação, isto vai ser difícil de acontecer pela complexidade e pela
escala da operação", ressalta a especialista.
Eduardo Svartman
destaca que a GLO atua para remediar uma emergência, uma crise de greve de
polícia, rebelião de presídio, ação de organizações criminosas. Mas a causa
desses problemas não pode ser resolvida pelos militares. "A causa só pode
ser tratada por agências especializadas. Quais são as agências que detém essa
competência? As polícias nos estados. O provimento do serviço de segurança
pública não é das Forças Armadas."
"A cada GLO
se perde a oportunidade de fortalecer as polícias e outras agências que devem
atuar na segurança pública. Esse é o debate que precisa ser feito pelo governo.
Criar ou fomentar instituições para cumprir essa missão. As Forças Armadas, não
resolveram, não resolvem e não resolverão essa questão" ressalta Svartman.
Entre 1992 e
2019, os militares participaram de 136 operações de GLO, de acordo com dados do
Ministério da Defesa. Boa parte delas serviu para a segurança de grandes
eventos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016, ou tentar conter
o avanço do crime organizado em favelas, como no Complexo da Maré, em 2014.
O que pode ser feito
Ao olhar
experiências latino-americanas, Pires acredita que o Brasil deve diminuir a
militarização de sua polícia e, por consequência, do uso das Forças Armadas no
cotidiano da população. "Na Argentina, por exemplo, onde as drogas também
são consideradas um problema público, os desafios na área de segurança são
enfrentados pelas forças civis. Com erros e acertos, é um país que exibe
índices de criminalidade violenta – incluindo aqueles envolvendo o uso da força
policial – muito mais brandos que os nossos."
Em
contrapartida, afirma Pires, o México tem apostado em uma militarização
desenfreada, algo que não tem sido benéfico ao país. Em março deste ano, a ONG
mexicana Conselho Cidadão para a Segurança Pública e a Justiça Penal mostrou
que o país ostenta nove das dez cidades mais violentas do mundo. "O país
seguiu um caminho perigoso de militarizar, com uso das Forças Armadas, as
iniciativas de segurança pública. O resultado é o crescente envolvimento de
atores ligados aos militares nos esquemas que são criados para viabilizar os
negócios, diante do crescimento da repressão armada."
Para o
especialista em Relações Internacionais Thiago Rodrigues, da Universidade
Federal Fluminense (UFF), a solução dos problemas passa por uma reforma
drástica do sistema de segurança pública do Brasil, a começar pela diminuição
da repressão. "O que nós devemos fazer é investir em ações de inteligência
e rastreamento de rotas e trânsito dos fluxos financeiros gerados pelo capital
ilegal".
"Isso quer
dizer que a GLO em portos e aeroportos precisa ser acompanhada por
movimentações robustas de inteligência utilizando a Polícia Federal e as
polícias estaduais, em cooperação com as polícias internacionais. Isso pode
coibir a dinâmica do narcotráfico e os valores que ele movimenta aqui e no
mundo", conclui.
Fonte: DW – Por Guilherme Henrique
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