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segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

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COMO O FURTO DE UM CARTÃO LEVOU A PF À PROVA QUE FALTAVA PARA LIGAR O PCC À MÁFIA DOS BÁLCÃS

 

Arquivos encontrados no celular de Carlos Mattaman da Silva, um dos investigados pela Operação Dontraz, da Polícia Federal Foto: Reprodução/Polícia Federal

Todos os acusados negavam o vínculo à orcrim, ainda que alguns fossem da comunidade da Pouca Farinha, perto do Porto de Santos

Quando a Polícia Federal (PF) bateu em 5 de outubro de 2023 na porta do comerciante de peixes Vanderlei da Silva Faria , de 39 anos, e de sua mulher Ana Júlia Mendes , em São Francisco do Sul, em Santa Catarina, encontraram tanto a casa quanto o antigo comércio do casal, a Peixaria Faria, fechada. Os agentes conseguiram o endereço dos dois e a ordem de busca judicial durante as investigações da Operação Dontraz, sobre o bilionário do tráfico de drogas comandado por Máfia dos Bálcãs entre a América do Sul e a Europa.

Os agentes chegaram a indagar os vizinhos e supostamente que os suspeitos estavam morando em outro endereço, no bairro Morro Grande, ali mesmo em São Francisco do Sul. Foi a última fase da Operação Dontraz, a primeira ação da recém-criada Força Integrada de Combate ao Crime Organizada (FICCO), que reúne membros das polícias federais e estaduais e agentes penais. Os policiais rumaram para o novo endereço de Faria, contra quem a Justiça Federal expediu um mandado de prisão preventiva.

Até então, os policiais sabiam que integrantes da Máfia dos Balcãs, coordenados no Brasil por Sérvio Aleksandar Nesic, o Buda ou Cara de Sapato, estavam por trás do envio de 10,2 toneladas de cocaína apreendidas em dois barcos – o Alcatraz 1 e o Dom Isaac XII – pelos Federais com a ajuda das Marinhas do Brasil e dos Estados Unidos, depois que partiram de Fortaleza para a Europa com 6,6 toneladas de cocaína. Também sabia que os traficantes ligados ao PCC deveriam se unir aos serviços para fornecer uma tripulação de barcos e providenciar a compra de uma flotilha para o tráfico.

O pesqueiro Alcatraz !, uma das embarcações da flotilha do tráfico da Máfia Sérvia, que foram apreendidos pela PF durante a Operação Dontraz - Foto: Reprodução Polícia Federal

Mas faltava aos federais provas materiais de ligação dos brasileiros com a facção, pois, apesar dos acusados, todos os acusados ​​negavam o vínculo à organização criminosa, ainda que alguns fossem da comunidade da Pouca Farinha, perto do Porto de Santos, área com forte presença do PCC. Faria foi um dos alvos da última fase da Operação Dontraz, com justiça, pela suspeita de estar ligado à logística do segundo carregamento, o do pesqueiro Dom Isaac XII, que deixou Santa Catarina e rumara ao Ceará, onde foi carregado com a droga.

Homem supersticioso, Faria estava tranquilo em casa. Após a queda de Dom Isaac XII, em 16 de agosto de 2022, e da prisão da tripulação com quem o comerciante mantinha contato, ele temeu que pudesse ser preso pela PF. Mas o tempo passou e nada indicava que sua participação no esquema havia sido descoberta. Um ano depois, em 19 de setembro de 2023, o destino lhe deu um segundo aviso. Na manhã daquele dia, outra embarcação da flotilha do tráfico, a Palmares 1, foi abordada pela Marinha e pela PF ao largo da costa pernambucana com 3,6 toneladas de cocaína.

O barco também saiu de Santa Catarina, como o Dom Isaac XII. O raio caiu pela terceira vez em cima do esquema da Máfia dos Bálcãs. Em um dos celulares apreendidos com a tripulação de Dom Isaac XII, os federais encontraram diálogos que abriram o caminho até Faria. Por volta das 17h40 de 1.º de agosto de 2022, o comerciante enviou uma mensagem a um dos tripulantes daquele embarque. Identificou-se com o nome de Anúbis, o Deus dos mortos e moribundos do antigo Egito. E fez um pedido:

“Seu Moura, deixa eu explicar pra você seu Moura. O negócio que tá aí dentro é ruim, não é espírito de luz, é ruim! Então meu amigo, por favor, não deixa (sic) ninguém rezar nesse barco, pelo amor de Deus. Exu é bom! Isso aí é ruim, isso aí é pra proteger meu amigo. Então se ficar eles (sic) fazendo, oração, ficar fazendo essas coisas de loucos de crente...não deixa ninguém rezar nesse barco por favor...”

Faria reforçaria o pedido em outras mensagens. Disse ao interlocutor que reuniu a tripulação, pois eu mandaria um áudio pelo aplicativo que todos deveriam ouvir. “Seu Amauri, o que tá aí, não pode ser mexido. Tudo bem, Amauri? O que foi colocado aí é de Vodu. Isso aí não é espírito de luz. Não pode fazer oração evangélica aí dentro. OK? Nada contra a religião de ninguém, mas o que tá aí é sério. Ele tá aí com vocês, ele vai acompanhar vocês, vai proteger vocês. Agora vocês não fazem uma loucura daí, porque se ele se revoltar, ninguém sai daí. Por favor. Eu não estou brincando com essas coisas. Não brinque com isso.”

A casa de Faria 'caiu' dentro do seu celular

De nada adiantou o conselho. Dezesseis dias depois, o barco e a droga foram apreendidos e a tripulação, presa. A federal não bateu naqueles dias na porta de Faria, mas a Polícia Militar de São Paulo sim. E não foi por causa do barco ou da cocaína perdida no mar. É aqui que começa a história de como, mais de um ano depois, os Federais conseguiram a prova que faltava na Operação Dontraz para ligar o PCC à flotilha do tráfico bilionário da Máfia dos Bálcãs.

Faria e sua mulher, Ana Júlia Mendes, estavam morando em Guararema, na Grande São Paulo, em outubro de 2022, quando a babá dos filhos do casal começou a desconfiar de que o patrão estava envolvido em alguma coisa errada. A moça contou ao namorado, e ele aguçou a curiosidade da jovem, que decidiu descobrir tudo. E assim foi. Mas quando ela estava ao telefone contando que os patrões estavam envolvidos com tráfico de drogas, foi surpreendida por Ana Júlia.

Vanderlei Faria e sua mulher Ana julia foram presos sob a acusação de torturar a babá quando eram investigados pela PF em razão da rota transatlântica - Foto: Polícia Civil/Divulgação

A patroa não teve dúvida: arrastou a babá pela escada abaixo da casa e chamou o marido, que chegou com uma faca. “O Comando vai te matar”, teria dito Ana Júlia à funcionária. “Dona Júlia disse que, no mínimo, vou quebrar minhas duas pernas.”, afirmou a baba. Foi quando a PM chegou, chamada pelo namorado da moça. O casal foi preso em flagrante sob acusação de torturar uma funcionária, mas acabou solto pela Justiça e voltou para Santa Catarina.

Enquanto estavam presos, uma outra funcionária do casal, ficou com o cartão do banco do comerciante e, de posse da senha, se apropriou de R$ 60 mil do patrão. Faria ficou furioso. Logo depois de ser libertado em março de 2023 e descobrir que fora vítima do desfalque, ele entrou em contato com um criminoso identificado como Pazini. E foi logo dizendo que a “mulher” que dera o golpe poderia ser encontrada por meio do “irmão” conhecido como Nenê Paraíba, um integrante da “Final de São José dos Campos”.

Era uma referência à Sintonia Final da facção na região do Vale do Paraíba, a chefia da facção na região. Faria gravou um áudio e pensei que ele estava protegido pelas senhas do seu celular. Disse que era necessário levar os “ratos” responsáveis ​​pelo furto pro Resumo, o tribunal do crime, o chamado “Resumo Disciplinar”. A pena para “mão na cumbuca”, segundo o código penal do PCC, é “exclusão com cobrança disciplinar”. Ou seja, dependendo do caso, o acusado deve apanhar de pé, sem gritar. Se cair, a pancadaria para, mas o réu não pode “meter o louco” e fingir que caiu, que aí o espancamento não vai terminar. A cartilha da facção diz que nesses casos o preso deve apanhar o “pescoço para baixo”.

Pazini mandou uma resposta a Faria, dizendo que levaria o pedido de Faria para a cúpula da facção. E afirmou que Faria deveria estar presente no julgamento. Na semana seguinte, Faria estaria no tribunal do crime. A facção deu “um prazo” para que o autor da “mão na cumbuca” devolvesse o dinheiro, caso não quisesse sofrer as consequências. O dinheiro teria sido devolvido, mas as mensagens guardadas no celular de Faria.

No dia em que os federais bateram em sua porta, lá estavam elas no aparelho apreendido. Mais uma vez, o comerciante supersticioso pensou que estava protegido. E, de fato, a espécie parecia sorrir para o acusado. É que na primeira tentativa feita pela PF para extrair os dados de seu telefone celular, os peritos de Santa Catarina consignaram no laudo: “o equipamento Cellebrite UFED (usado pela perícia) não foi capaz de efetivar uma extração completa do sistema de arquivos – Full File System – do aparelho questionado, tendo sido realizado apenas uma remoção parcial dos dados armazenados”. É o que consta do Relatório de Análise de Polícia Judiciária- RAPJ nº 87/2023-FICCO/DRPJ/SR/PF/SP.

Faria parecia salvo da acusação de pertencer à organização criminosa. Seu companheiro Carlos Marratman Silveira não teve a mesma sorte. Em um celular apreendido em seu apartamento no Canto do Forte, na Praia Grande, no litoral de São Paulo, a polícia encontrou imagens e mensagens que o associavam ao PCC. Era o segundo acusado do grupo nessa situação: o primeiro havia sido Lino Barbosa de Souza Junior, o Gordão – os dois e Faria estão entre os 15 indiciados que permanecem presos na operação. Um quarto acusado de pertencer à facção – Jairo de Souza – está foragido.

Carlos Marratman Silveira é um dos 15 que foram presos por causa da operação Dontraz, em seu celular os federais acharam mensagens sobre o PCC - Foto: Reprodução Polícia Federal 

A FICCO pediu então uma nova análise no celular de Faria para o Serviço Técnico Científico da Polícia Federal de São Paulo/SP3, que possui recursos tecnológicos mais avançados do que os dos peritos catarinenses. E assim foi feito um novo exame para extrair os dados do celular, conforme o Relatório de Análise de Polícia Judiciária- RAPJ nº 104/2023-FICCO/DRPJ/SR/PF/SP. No segundo exame, como dizem os federais, “a casa de Faria caiu”. Todas as mensagens que ele enviou e recebeu com o perfil “gladiador” foram descobertas. Eles permitiram ao delegado Alexandre Custódio Neto, diretor da FICCO, escrever no relatório final complementar da Operação Dontraz, de 15 de dezembro de 2023:

“Oportuno registrar o vínculo de alguns investigados, que inclusive desempenharam o papel de coordenadores logísticos nos eventos de tráfico transnacional de drogas ora investigados, com a facção criminosa Primeiro Comando da Capital, a exemplo de Vanderlei da Silva Faria, Jairo de Souza, Lino Barbosa de Sousa Júnior e Carlos Marratman Silveira, pois foram comprovadamente criminosos, levantados desde o início das investigações, de que se associaram nessas empreitadas ilícitas de narcotráfico internacional, membros da Máfia dos Bálcãs e do PCC”. O furto de um cartão e seu uso entregue à PF a prova que faltava.

Fonte: Estadão/Marcelo Godoynewsultimashoras


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