Arquivos encontrados no celular de Carlos Mattaman da Silva, um dos investigados pela Operação Dontraz, da Polícia Federal Foto: Reprodução/Polícia Federal |
Todos
os acusados negavam o vínculo à orcrim, ainda que alguns fossem da comunidade
da Pouca Farinha, perto do Porto de Santos
Quando a Polícia Federal (PF) bateu em 5 de outubro
de 2023 na porta do comerciante de peixes Vanderlei da Silva Faria , de 39
anos, e de sua mulher Ana Júlia Mendes , em São Francisco do Sul, em Santa
Catarina, encontraram tanto a casa quanto o antigo comércio do casal, a
Peixaria Faria, fechada. Os agentes conseguiram o endereço dos dois e a ordem
de busca judicial durante as investigações da Operação Dontraz, sobre o
bilionário do tráfico de drogas comandado por Máfia dos Bálcãs entre a América
do Sul e a Europa.
Os agentes chegaram a indagar os vizinhos e
supostamente que os suspeitos estavam morando em outro endereço, no bairro
Morro Grande, ali mesmo em São Francisco do Sul. Foi a última fase da Operação
Dontraz, a primeira ação da recém-criada Força Integrada de Combate ao Crime
Organizada (FICCO), que reúne membros das polícias federais e estaduais e
agentes penais. Os policiais rumaram para o novo endereço de Faria, contra quem
a Justiça Federal expediu um mandado de prisão preventiva.
Até então, os policiais sabiam que integrantes da
Máfia dos Balcãs, coordenados no Brasil por Sérvio Aleksandar Nesic, o Buda ou Cara de Sapato, estavam por trás do envio de 10,2 toneladas de cocaína
apreendidas em dois barcos – o Alcatraz 1 e o Dom Isaac XII – pelos Federais
com a ajuda das Marinhas do Brasil e dos Estados Unidos, depois que partiram de
Fortaleza para a Europa com 6,6 toneladas de cocaína. Também sabia que os
traficantes ligados ao PCC deveriam se unir aos serviços para fornecer uma
tripulação de barcos e providenciar a compra de uma flotilha para o tráfico.
O pesqueiro Alcatraz !, uma das embarcações da flotilha do tráfico da Máfia Sérvia, que foram apreendidos pela PF durante a Operação Dontraz - Foto: Reprodução Polícia Federal |
Mas faltava aos federais provas materiais de
ligação dos brasileiros com a facção, pois, apesar dos acusados, todos os
acusados negavam o vínculo à organização
criminosa, ainda que alguns fossem da comunidade da Pouca Farinha, perto do Porto
de Santos, área com forte presença do PCC. Faria foi um dos alvos da última
fase da Operação Dontraz, com justiça, pela suspeita de estar ligado à
logística do segundo carregamento, o do pesqueiro Dom Isaac XII, que deixou
Santa Catarina e rumara ao Ceará, onde foi carregado com a droga.
Homem supersticioso, Faria estava tranquilo em
casa. Após a queda de Dom Isaac XII, em 16 de agosto de 2022, e da prisão da
tripulação com quem o comerciante mantinha contato, ele temeu que pudesse ser
preso pela PF. Mas o tempo passou e nada indicava que sua participação no
esquema havia sido descoberta. Um ano depois, em 19 de setembro de 2023, o
destino lhe deu um segundo aviso. Na manhã daquele dia, outra embarcação da
flotilha do tráfico, a Palmares 1, foi abordada pela Marinha e pela PF ao largo
da costa pernambucana com 3,6 toneladas de cocaína.
O barco também saiu de Santa Catarina, como o Dom
Isaac XII. O raio caiu pela terceira vez em cima do esquema da Máfia dos
Bálcãs. Em um dos celulares apreendidos com a tripulação de Dom Isaac XII, os
federais encontraram diálogos que abriram o caminho até Faria. Por volta das
17h40 de 1.º de agosto de 2022, o comerciante enviou uma mensagem a um dos
tripulantes daquele embarque. Identificou-se com o nome de Anúbis, o Deus dos mortos
e moribundos do antigo Egito. E fez um pedido:
“Seu Moura, deixa eu explicar pra você seu Moura. O
negócio que tá aí dentro é ruim, não é espírito de luz, é ruim! Então meu
amigo, por favor, não deixa (sic) ninguém rezar nesse barco, pelo amor de Deus.
Exu é bom! Isso aí é ruim, isso aí é pra proteger meu amigo. Então se ficar
eles (sic) fazendo, oração, ficar fazendo essas coisas de loucos de
crente...não deixa ninguém rezar nesse barco por favor...”
Faria reforçaria o pedido em outras mensagens.
Disse ao interlocutor que reuniu a tripulação, pois eu mandaria um áudio pelo
aplicativo que todos deveriam ouvir. “Seu Amauri, o que tá aí, não pode ser
mexido. Tudo bem, Amauri? O que foi colocado aí é de Vodu. Isso aí não é
espírito de luz. Não pode fazer oração evangélica aí dentro. OK? Nada contra a
religião de ninguém, mas o que tá aí é sério. Ele tá aí com vocês, ele vai
acompanhar vocês, vai proteger vocês. Agora vocês não fazem uma loucura daí,
porque se ele se revoltar, ninguém sai daí. Por favor. Eu não estou brincando
com essas coisas. Não brinque com isso.”
A
casa de Faria 'caiu' dentro do seu celular
De nada adiantou o conselho. Dezesseis dias depois,
o barco e a droga foram apreendidos e a tripulação, presa. A federal não bateu
naqueles dias na porta de Faria, mas a Polícia Militar de São Paulo sim. E não
foi por causa do barco ou da cocaína perdida no mar. É aqui que começa a
história de como, mais de um ano depois, os Federais conseguiram a prova que
faltava na Operação Dontraz para ligar o PCC à flotilha do tráfico bilionário
da Máfia dos Bálcãs.
Faria e sua mulher, Ana Júlia Mendes, estavam
morando em Guararema, na Grande São Paulo, em outubro de 2022, quando a babá
dos filhos do casal começou a desconfiar de que o patrão estava envolvido em
alguma coisa errada. A moça contou ao namorado, e ele aguçou a curiosidade da
jovem, que decidiu descobrir tudo. E assim foi. Mas quando ela estava ao
telefone contando que os patrões estavam envolvidos com tráfico de drogas, foi
surpreendida por Ana Júlia.
Vanderlei Faria e sua mulher Ana julia foram presos sob a acusação de torturar a babá quando eram investigados pela PF em razão da rota transatlântica - Foto: Polícia Civil/Divulgação |
A patroa não teve dúvida: arrastou a babá pela
escada abaixo da casa e chamou o marido, que chegou com uma faca. “O Comando
vai te matar”, teria dito Ana Júlia à funcionária. “Dona Júlia disse que, no
mínimo, vou quebrar minhas duas pernas.”, afirmou a baba. Foi quando a PM
chegou, chamada pelo namorado da moça. O casal foi preso em flagrante sob
acusação de torturar uma funcionária, mas acabou solto pela Justiça e voltou
para Santa Catarina.
Enquanto estavam presos, uma outra funcionária do
casal, ficou com o cartão do banco do comerciante e, de posse da senha, se
apropriou de R$ 60 mil do patrão. Faria ficou furioso. Logo depois de ser
libertado em março de 2023 e descobrir que fora vítima do desfalque, ele entrou
em contato com um criminoso identificado como Pazini. E foi logo dizendo que a
“mulher” que dera o golpe poderia ser encontrada por meio do “irmão” conhecido
como Nenê Paraíba, um integrante da “Final de São José dos Campos”.
Era uma referência à Sintonia Final da facção na
região do Vale do Paraíba, a chefia da facção na região. Faria gravou um áudio
e pensei que ele estava protegido pelas senhas do seu celular. Disse que era
necessário levar os “ratos” responsáveis pelo furto “pro Resumo”, o tribunal do crime, o chamado “Resumo
Disciplinar”. A pena para “mão na cumbuca”, segundo o código penal do PCC, é
“exclusão com cobrança disciplinar”. Ou seja, dependendo do caso, o acusado
deve apanhar de pé, sem gritar. Se cair, a pancadaria para, mas o réu não pode
“meter o louco” e fingir que caiu, que aí o espancamento não vai terminar. A
cartilha da facção diz que nesses casos o preso deve apanhar o “pescoço para
baixo”.
Pazini mandou uma resposta a Faria, dizendo que
levaria o pedido de Faria para a cúpula da facção. E afirmou que Faria deveria
estar presente no julgamento. Na semana seguinte, Faria estaria no tribunal do
crime. A facção deu “um prazo” para que o autor da “mão na cumbuca” devolvesse
o dinheiro, caso não quisesse sofrer as consequências. O dinheiro teria sido
devolvido, mas as mensagens guardadas no celular de Faria.
No dia em que os federais bateram em sua porta, lá
estavam elas no aparelho apreendido. Mais uma vez, o comerciante supersticioso
pensou que estava protegido. E, de fato, a espécie parecia sorrir para o
acusado. É que na primeira tentativa feita pela PF para extrair os dados de seu
telefone celular, os peritos de Santa Catarina consignaram no laudo: “o
equipamento Cellebrite UFED (usado pela perícia) não foi capaz de efetivar uma
extração completa do sistema de arquivos – Full File System – do aparelho
questionado, tendo sido realizado apenas uma remoção parcial dos dados
armazenados”. É o que consta do Relatório de Análise de Polícia Judiciária-
RAPJ nº 87/2023-FICCO/DRPJ/SR/PF/SP.
Faria parecia salvo da acusação de pertencer à
organização criminosa. Seu companheiro Carlos Marratman Silveira não teve a mesma
sorte. Em um celular apreendido em seu apartamento no Canto do Forte, na Praia
Grande, no litoral de São Paulo, a polícia encontrou imagens e mensagens que o
associavam ao PCC. Era o segundo acusado do grupo nessa situação: o primeiro
havia sido Lino Barbosa de Souza Junior, o Gordão – os dois e Faria estão entre
os 15 indiciados que permanecem presos na operação. Um quarto acusado de
pertencer à facção – Jairo de Souza – está foragido.
Carlos Marratman Silveira é um dos 15 que foram presos por causa da operação Dontraz, em seu celular os federais acharam mensagens sobre o PCC - Foto: Reprodução Polícia Federal |
A FICCO pediu então uma nova análise no celular de
Faria para o Serviço Técnico Científico da Polícia Federal de São Paulo/SP3,
que possui recursos tecnológicos mais avançados do que os dos peritos
catarinenses. E assim foi feito um novo exame para extrair os dados do celular,
conforme o Relatório de Análise de Polícia Judiciária- RAPJ nº
104/2023-FICCO/DRPJ/SR/PF/SP. No segundo exame, como dizem os federais, “a casa
de Faria caiu”. Todas as mensagens que ele enviou e recebeu com o perfil
“gladiador” foram descobertas. Eles permitiram ao delegado Alexandre Custódio
Neto, diretor da FICCO, escrever no relatório final complementar da Operação
Dontraz, de 15 de dezembro de 2023:
“Oportuno registrar o vínculo de alguns
investigados, que inclusive desempenharam o papel de coordenadores logísticos
nos eventos de tráfico transnacional de drogas ora investigados, com a facção
criminosa Primeiro Comando da Capital, a exemplo de Vanderlei da Silva Faria,
Jairo de Souza, Lino Barbosa de Sousa Júnior e Carlos Marratman Silveira, pois
foram comprovadamente criminosos, levantados desde o início das investigações,
de que se associaram nessas empreitadas ilícitas de narcotráfico internacional,
membros da Máfia dos Bálcãs e do PCC”. O furto de um cartão e seu uso entregue
à PF a prova que faltava.
Fonte: Estadão/Marcelo Godoy – newsultimashoras
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