Segundo
a Polícia Federal, entre 2018 e 2022, foram apreendidas pelo menos 26,8
toneladas de cocaína que seriam traficadas via portos do Nordeste
“Tia, pelo amor
de Deus tia. Nós estava (sic) colocando o barco na água e a polícia encostou.
Corri pra água e mergulhei. Dá pra senhora vir aqui me buscar?”. O jovem de
cabelos castanhos, pele branca, bigode e cavanhaque está ofegante, nervoso.
Escondido na calada da noite num mangue da Redinha, praia de Natal, ele liga
para a sogra e pede ajuda. A operação para levar 383 quilos de cocaína em uma
lancha até um contêiner de um navio, fracassara. Pior: viu três de seus comparsas
serem presos pela Polícia. A ação seria mais uma contaminação em contêineres de
cargas de frutas que saem de Natal para portos europeus, situação que virou
rotina no Rio Grande do Norte e no Nordeste nos últimos anos.
SAIBA MAIS: ROTA MARÍTIMA DO TRÁFICO INTERNACIONAL DE DROGAS PELO PORTO DE RIO GRANDE COMEÇA A SER CONFIRMADA
Segundo dados da
Polícia Federal, entre 2018 e 2022, foram apreendidas pelo menos 26,8 toneladas
de cocaína que seriam traficadas via portos do Nordeste. O valor de mercado
dessa cocaína na Europa pode chegar a US$ 1 bilhão (R$ 5,1 bilhões na cotação
atual). Só em Natal, por exemplo, foram 7,5 toneladas, equivalente a R$ 1,4
bilhão.
Após mais de um
ano de investigação da Polícia Federal, o Ministério Público Federal (MPF) denunciou o jovem e outras 54 pessoas à Justiça Federal por suspeita de
organização criminosa e tráfico internacional de drogas. Segundo a denúncia,
protocolada em setembro de 2022, o grupo é formado majoritariamente de pessoas
de São Paulo e é apenas uma das quadrilhas que enxergaram Natal e em outros
estados do Nordeste como uma oportunidade para escoar cocaína com mais
facilidade para países europeus como Holanda, Bélgica e até países da África.
A reportagem da
TRIBUNA DO NORTE, dentro do escopo do programa de mentorias da Associação
Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), obteve documentos, informações
policiais, denúncias e acessou processos e sentenças judiciais que detalham
rotas da cocaína de países da América do Sul até chegar ao Nordeste, modus
operandi das quadrilhas para driblar a fiscalização nos portos, e valores
ganhos com as operações.
São pelo menos
três grandes grupos, com ramificações e “sedes” em lugares diferentes. Um
desses grupos, inclusive, era subordinado ao ex-major da Polícia Militar do Mato
Grosso, Sérgio Roberto de Carvalho, o Major Carvalho, apontado como o maior
narcotraficante do país.
São vários os
fatores que tornaram o Porto de Natal, e outros do Nordeste, uma das rotas para
o tráfico internacional de drogas, segundo fontes da Segurança Pública e das
investigações ouvidas pela TRIBUNA DO NORTE. Entre os fatores citados estão a
falta de um scanner para inspeção não invasiva dos contêineres; o aumento nas
apreensões e fiscalizações no Porto de Santos, o maior do Brasil e a
proximidade do terminal com a Europa em relação a outros portos.
Aliado a isso, a
cocaína segue sendo um produto de alto valor no mercado nacional e
internacional. Dados da Polícia Federal mostram que na produção da droga em
países como Colômbia, Bolívia e Peru, o quilo da cocaína custa aproximadamente
US$ 800, no mercado consumidor europeu o mesmo quilo chega a custar de US$ 35 a
40 mil. Nas fronteiras desses países com o Brasil e nos centros e portos do
Nordeste, esse valor varia entre US$ 2 e 6 mil. Esses são os valores brutos,
não considerando custos das quadrilhas com transporte, logística, pagamento de
aliados e propinas, por exemplo.
“Geograficamente
Natal é um local maravilhoso para ter acesso a outros continentes, em especial
Europa e África. A ausência de uma fiscalização mais contundente também
contribuiu. Por muitos anos, Natal não tinha scanner para apurar o que se tinha
nas mercadorias”, acrescenta Fernando Rocha, procurador do MPF.
Portos
Segundo dados da
Polícia Federal enviados à pedido da TRIBUNA DO NORTE, portos do Nordeste
ganharam representatividade no escoamento de cocaína para a Europa nos últimos
anos. As estatísticas da PF fazem discriminação detalhada dos dados apenas dos
seis portos, e cidades, mais relevantes, mas é possível observar o aumento da
representatividade do Nordeste nas apreensões.
Em 2018, por
exemplo, houve apreensão de 1.685 quilos de cocaína em Salvador (1.662) e
Fortaleza (23), representando 5% em um universo de 33.315 quilos apreendidos em
portos do Brasil. Com o passar dos anos e a expansão dos grupos criminosos, o
narcotráfico pelo Nordeste cresceu: em 2019, foram pelo menos 9.084 quilos
(5.645 em Natal e 3.439 em Salvador) de um total de 60.901 (14%).
Já em 2020, o
estado do Nordeste com mais apreensões foi a Bahia, com apreensões em Salvador
(8.306 quilos) e Ilheus (2.078 quilos) de um total de 53.316 quilos, um
percentual de 19,4%. Em 2021, Natal voltou a figurar no Top-6, sendo a única do
Nordeste citada, com 2.400 quilos de cocaína apreendidas de 45.910, percentual
de 5,2%. Já no ano passado, as apreensões nos portos do Nordeste foram em
Aracaju (1.303) e em Fortaleza (1.281), representando 8% de 29.265 quilos
apreendidos nos portos do Brasil.
Segundo dados da
Superintendência da PF, de 2019 até março de 2023 foram apreendidos 14,2
toneladas de drogas no Rio Grande do Norte. Destas, 7.567,14 toneladas foram
apreendidas em contêineres de Natal que teriam a Europa como destino final. O
ano de 2023 registrou apreensões, ainda que tímidas, de quase 30 quilos de
cocaína.
Os números da PF
também apresentam um segundo contexto: outras 6.672,7 toneladas de drogas
apreendidas também seriam encaminhadas via Porto de Natal, mas foram
interceptadas ora em caminhões que desviaram de rota, ora após a PF descobrir
esconderijos. Um desses, por exemplo, foi a apreensão de 5,15 toneladas na
cidade de Areia Branca, litoral norte potiguar. Foi a maior apreensão de drogas
já realizada no Rio Grande do Norte. O grupo denunciado pelo MPF possuía ainda
outros 960 kg em Santos/SP e 39 kg em Salvador/BA.
As contaminações
das drogas nos contêineres viraram rotina em Natal a partir de fevereiro 2019,com a primeira apreensão no Porto de Natal de 3,2 toneladas de cocaína em dois dias. A droga estava acondicionada numa carga de mangas que iria para o Porto
de Roterdã, na Holanda. Naquele ano, por exemplo, Natal ficou no top-3 entre os
37 portos existentes em todo o País, com 5,6 toneladas de cocaína apreendidos.
Em Santos (SP) e Paranaguá (PR), a apreensão foi de 27,6 e 15,4 toneladas,
respectivamente.
“Isso não foi uma exclusividade do Porto de Natal. Em meados de 2017 e 2018, as operações de tráfico de drogas se espalharam por todos os portos do Brasil. Claro que Natal tinha alguns problemas estruturais mais graves que de repente facilitaram, como a falta do scanner. Todos tiveram aumento de apreensões de drogas. A última aqui em Natal foi em novembro de 2021. As operações da PF contribuíram para desestruturar o grupo que operava aqui”, explica o inspetor-chefe da Receita Federal no Rio Grande do Norte, Maurício Santos.
MPF denunciou quadrilha à Justiça
O grupo em
questão denunciado pelo MPF era formado em sua maioria por paulistas, mas
resolveu concentrar suas atuações no Rio Grande do Norte, tendo ramificações
nos portos de Santos/SP, Salvador/BA, Fortaleza/CE e Belém/PA. Segundo a
denúncia, o grupo aproveitava contêineres com diversos tipos de produtos e os
“contaminavam” com as drogas.
“É uma
organização muito bem estruturada, com divisão de tarefas especializada, tendo
uma grande movimentação de transporte e de pessoas envolvidas. São pessoas
denunciadas como integrantes dessa organização criminosa. Há também o segundo
crime que é o propriamente de tráfico do ponto de vista típico, que é quando
alguém transporta, movimenta, deposita ou exporta ou importa drogas”, informa
Fernando Rocha.
O procurador
aponta ainda que, na avaliação dele, esse é o maior grupo de tráfico de drogas
que já operou no RN. “Essa operação revelou um grau muito grande de especialização
e divisão de tarefas pré-definidas”, acrescenta. Esse, no entanto, não foi o
único grupo investigado no Rio Grande do Norte. De acordo com Santiago Hounie,
delegado regional da Polícia Judiciária, da Polícia Federal, as investigações
da PF identificaram a atuação de outro grupo no Rio Grande do Norte. A Operação
“Além Mar”, deflagrada em 2020, descortinou as ações da quadrilha.
“Tivemos duas
grandes investigações a respeito de grupos distintos, que não são interligados,
mas que por coincidência ambos utilizavam o Porto de Natal e do Nordeste para o
tráfico internacional de drogas”, disse. “Os criminosos identificaram
vulnerabilidades em determinados portos, incluindo o de Natal. A Polícia
Federal está atenta a essa nova ação do crime organizado e está concentrando
esforços para reprimir essas ações a despeito das medidas do próprio Porto para
melhorar a segurança da atividade lícita que é a exportação”, disse.
Içamento e lacres clonados: conheça a
metodologia
Nas investigações
da Polícia Federal no RN, foram identificados dois métodos utilizados pela
quadrilha: contaminação do contêiner dentro do Terminal Portuário; contaminação
do contêiner quando ele já está no interior do navio, também chamado de
“içamento”; contaminação do contêiner fora do Porto pelo modo “RipOn/Rip-Off”,
modal em que a organização criminosa viola o contêiner que considera ideal e
insere a droga em seu interior. Sendo assim, as partes envolvidas (exportador/importador)
não tomam conhecimento das ações dos traficantes.
A quadrilha
possuía um quartel general, denominado por eles de “Mansão Mudrunga”, que
ficava localizada no bairro Pitimbu, zona Sul de Natal. Uma das formas que a PF
descobriu a contaminação foi pela constatação após perícia nas temperaturas dos
contêineres. Em um desses casos, um trajeto de Petrolina-PE para Natal que
deveria ter sido feito em 22 horas teve gasto três horas a mais além do tempo,
uma vez que o motorista parou num galpão em São José do Mipibu para abastecer o
contêiner com a droga. “O relatório do termógrafo de identificação que foi
instalado no último pallet do contêiner apontou que houve uma elevação de
temperatura em seu interior, passando de 12º C para 22,6º C”, diz a denúncia.
Em outros casos,
a droga era “içada” nos navios com o uso de lanchas. A PF também identificou a
atuação de pelo menos um funcionário de uma empresa que presta serviços no
Porto de Natal no auxílio aos criminosos, ensinando-os como abrir o contêiner
embarcado e fechá-lo sem deixar vestígios. Esse funcionário seria o responsável
por ajudar o trio que foi preso a fazer o içamento e a colocar a droga no
navio.
NÚMEROS
Preço da Cocaína no Mercado (Kg)
- Países de origem (Bolívia, Colômbia e Peru): US$ 800
- Fronteira com Brasil: US$ 2 mil
- Grandes centros e portos do Brasil (incluindo o Nordeste): US$ 6 mil
- Europa: US$ 35 a US$ 40 mil
Fonte: Polícia
Federal
Apreensões no Porto de Natal em Kgs (Dados
PF/RN)
- 2019: 4441,39
- 2020: 703,95
- 2021: 2.441,80
- 2022: 0
- 2023: 29,93
Total em Natal:
7.567,14
Apreensões em Portos do Nordeste (Dados
Polícia Federal)
- 2018: 1.885 (Salvador/BA e Fortaleza/CE)
- 2019: 9.084 (Natal/RN e Salvador/BA)
- 2020: 11.087 (Salvador/BA, Ilheus/BA e Natal/RN)*
- 2021: 2.400 (Natal/RN)
- 2022: 2.584 (Aracaju/SE e Fortaleza/CE)
- Total Nordeste: 26.840
Fonte: Tribuna do Norte
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