Porto de Sines |
Portugal prepara-se para a "tempestade branca". Mais de 16 toneladas de cocaína apreendidas em 2022
No coração da
Europa, o grau de violência associada ao crime organizado de tráfico de cocaína
escalou de tal forma que um alto comando da polícia belga receia que o seu país
se possa transformar num “narcoestado”. Na Bélgica, há governantes ameaçados,
nos Países Baixos, um jornalista foi assassinado a sangue frio por traficantes.
As autoridades portuguesas já perceberam que há uma ameaça fortíssima e estão
avisadas de que a mais perigosa organização criminosa brasileira está a
estender um dos seus tentáculos ao nosso país. Foi apreendido um volume recorde
de cocaína em 2022, além de 309 automóveis, nove veleiros e 2,4 milhões de
euros em dinheiro vivo.
Dezesseis toneladas e trezentos e cinco quilogramas é o volume de cocaína apreendido pelas autoridades portuguesas em 2022, de acordo com a soma que está a ser finalizada pela Polícia Judiciária (PJ), que investiga o tráfico de droga. É um recorde da década e é preciso recuar 15 anos, até 2006, para ter um valor superior (36,4 toneladas) e 18 toneladas em 2005.
Com esta cocaína,
ainda nos cálculos provisórios da Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de
Estupefacientes (UNCTE), passaram para o Estado também bens preciosos
apreendidos aos traficantes: 309 automóveis, boa parte certamente topo de gama,
nove veleiros, 179 armas, 2425 telemóveis e 2,4 milhões de euros em dinheiro
vivo, entre outro material.
Portugal está
desde 2018 no top 5 dos países europeus com mais cocaína apreendida, mas por
muito que se queira atribuir esta posição ao trabalho das polícias, a verdade é
que ela acompanha o brutal aumento da produção deste produto, para mais do
dobro, na América Latina, com destaque para a Colômbia .
“O mundo está
inundado de cocaína“, assinalam os analistas do Insightcrime no seu relatório
The Cocaine Pipeline to Europe, publicado em finais de 2021.
No coração da
Europa, o grau de violência associada ao crime organizado de tráfico de cocaína
escalou de tal forma que um alto comando da polícia belga receia que o seu país
se possa transformar num “narcoestado”.
“Se não houver
mais meios para as forças de segurança, dentro de 10 anos a Bélgica será um
narcoestado. O cenário que nos habituámos a ver na América Latina também é
possível na Europa”, declarou Kristian van der Waeven, diretor-geral da Polícia
das Alfândegas.
No epicentro do furacão
A principal porta
de entrada da cocaína tem sido os portos, onde os milhares de contentores
comerciais são a oportunidade perfeita para ocultar o pó, que tem a especial
característica de poder ser diluído e disfarçado em quase tudo e porque os
traficantes sabem que pouco mais de 10% dos contentores são fiscalizados.
Nesta semana,
numa inédita conferência de imprensa em Antuérpia com forças de segurança e
governantes belgas e holandeses (países que são o epicentro do furacão), foi
anunciado um novo recorde, com a apreensão de 109,9 toneladas de cocaína no ano
passado, só naquele porto.
Estes resultados
foram divulgados no dia seguinte à morte de uma menina de 11 anos atingida a
tiro no meio de uma guerra de traficantes naquela mesma cidade, que fica apenas
a uma hora de Bruxelas, sede das principais instituições da União Europeia.
Numa declaração
conjunta, o ministro das Finanças belga, Vincent van Peteghem, que tutela as
alfândegas, e o secretário de Estado holandês Aukje de Vries anunciaram uma
“cooperação intensa” entre as autoridades de ambos os países vizinhos e
prometeram a contratação de uma centena de polícias para os portos e um
investimento de 70 milhões de euros em instrumentos tecnológicos de deteção de
drogas.
A morte da menina
foi mais um episódio de grande violência associado ao tráfico de cocaína que
tem entrado num novo patamar.
Deixou de ser
apenas guerras entre gangues e máfias – a fome de poder e lucros atinge todos
os que lhe tentarem fazer frente. Há juízes a pedirem para não julgar casos
deste tráfico, advogados rodeados de guarda-costas, governantes ameaçados, isto
em plena Europa do século XXI.
Na Bélgica, a
polícia desmantelou um plano para raptar o ministro da Justiça, obrigado a
refugiar-se com a família numa casa segura. Um país onde a violência
relacionada com a droga provocou mais de 200 incidentes nos últimos cinco anos.
Nos Países
Baixos, um jornalista de investigação foi assassinado, uma testemunha-chave de
um processo contra traficantes foi morta tiro, juntamente com o seu advogado, e
até a princesa Amélia, de 18 anos, está sob proteção de segurança reforçada
depois de ter sido ameaçada de morte pela “Mocro Mafia”, a organização
criminosa liderada por marroquinos que controla a maior parte do tráfico
naquele país – e que no ano passado tinha também ameaçado o primeiro-ministro.
Organização criminosa brasileira estende
tentáculos a Portugal
A “tempestade
branca” está no horizonte do Atlântico, e em Portugal as autoridades estão
avisadas de que a mais perigosa organização criminosa brasileira nascida nos
anos 90 nas prisões do Estado de S. Paulo, o Primeiro Comando da Capital (PCC),
estendeu um dos seus tentáculos da Europa até ao nosso país e está a semear
operacionais.
Com um “exército”
de mais de 40 mil operacionais referenciados, o PCC tem procurado conquistar
espaço a outros grupos criminosos que também têm sido identificados no nosso
país, como a designada “máfia albanesa” e grupos dos Balcãs.
Fonte judicial
brasileira confirmou ao DN que “uns 40 membros podem estar em Portugal, como
apoio para a logística do tráfico”. Os rendimentos compensam todos os riscos e
as contas são simples: um quilograma de cocaína à saída do Brasil vale entre
cinco e seis mil euros, na União Europeia vale, pelo menos, 20 a 40 mil euros.
“A Europa não
está preparada para isto”, exclama um alto quadro policial que acompanha estas
matérias, prognosticando um “cenário possível em que o PCC começa a querer
controlar o tráfico de cocaína para a Europa a partir de Portugal e o crime
organizado mexicano começa a querer o mesmo, mas a partir de Espanha. Mais
tarde ou mais cedo haverá uma guerra entre ambos e são inevitáveis danos
colaterais.”
O diretor da
UNCTE, Artur Vaz, sabe bem o que está na linha do horizonte, mas relativiza um
pouco o alarme. “Não podemos negar nem enterramos a cabeça na areia. Temos de
estar preparados para tudo. A PJ trabalha com as autoridades de vários países”,
declara.
E o PCC? Fizeram
detenções? “Não vou dizer nada. A PJ está atenta, juntamente com as autoridades
brasileiras, em relação à atividade das múltiplas organizações que atuam no
tráfico de droga.”
Muita cooperação e equipas especializadas. E a
PJ a crescer
A especialista em
crime organizado Sylvie Figueiredo observa que “o cada vez maior envolvimento
do PCC no tráfico de cocaína tem sido visível também em Portugal, onde o grupo
está a aproveitar-se do facto de alguns membros ou elementos próximos aqui
residirem para desenvolver capacidade operacional no nosso país e aumentar os
níveis de violência em face da parceria criminosa que estabeleceu com redes do
Leste europeu (sérvios)”.
No entanto,
assinala, “existe um crescimento do crime organizado a nível global, e em
particular no mercado europeu de cocaína, pelo que o PCC é apenas um dos vários
grupos de crime organizado transnacional com interesse em operar no nosso
país”.
Artur Vaz
aquiesce. “Temos de estar preparados para tudo. O tráfico de cocaína tem
aumentado e a polícia tem de estar preparada”, sublinha, afastando, porém,
“comparações” com países como os Países Baixos ou a Bélgica. “Essa não é a
nossa realidade, espero que não atinjamos o nível de violência de outros
países.”
Este responsável,
que lidera há cinco anos o combate à droga na Judiciária, acredita que a forma
como a investigação está organizada, com “a coordenação entre todas as
entidades envolvidas e uma base de dados única“, juntamente “com uma grande
confiança na cooperação entre as autoridades dos vários países, múltiplas
fontes de informação, todo um trabalho de análise de risco das cargas e equipas
especializadas (por exemplo, para o tráfico marítimo os inspetores têm formação
para embarcar, mergulho e sobrevivência no mar)”, é um bom caminho.
A isto acresce,
lembra, a proposta que o diretor nacional da PJ, Luís Neves, anunciou numa
recente entrevista na RTP, quanto ao tráfico de droga passar a ter o estatuto
de “crime de investigação prioritária” na revisão da Lei de Política Criminal
que está em curso. “Para fazer face a estas novas ameaças, que são antigas mas
com uma outra intensidade, estes crimes passam – se for aprovada essa proposta
– a ter prioridade, numa altura em que a PJ vai ser reforçada em meios
humanos“, sublinha.
Portos em alerta e risco de corrupção
acrescido
Os dados oficiais
das apreensões em Portugal também indicam que foi pela via marítima que chegou
a esmagadora maioria da cocaína (14,3 das 16,3 toneladas apreendidas), com
Sines a ser incluído pela Europol na lista dos 10, tal como Vigo (Espanha),
Livorno (Itália) ou Vlissingen (Países Baixos), “portos comunitários
secundários onde a definição de perfis e as medidas de controlo podem ser
vistas como mais fáceis de ultrapassar”.
O diretor da
UNCTE recorda que “as maiores apreensões no ano passado foram no porto de
Setúbal, quase oito toneladas no total”.
A corrupção sobre
os estivadores e outros funcionários dos portos e também dos aeroportos faz
parte do negócio. “Corrupção e intimidação dos trabalhadores portuários, tanto
no setor privado como no setor do governo, é um facilitador-chave do
contrabando de cocaína através dos portos. Para além disso, há indícios de que
a corrupção relacionada com o mercado da cocaína está presente em outros
setores da sociedade europeia”, diz o relatório da Europol Mercado da Cocaína
na UE, atualizado em maio de 2022.
Questionado o
Ministério das Finanças, que tutela a Autoridade Tributária e Aduaneira (AT),
responsável pelas alfândegas destas infraestruturas críticas, sobre medidas de
prevenção contra o tráfico e a corrupção, este informa que a AT, que não tem
funções policiais, “tem vindo a dotar-se de meios de controlo não-intrusivo,
vulgo scanners, os quais, aliados à seleção baseada na análise de risco a que
submete os dados relativos às mercadorias procedentes de países terceiros,
potenciam o reforço da confirmação da existência de tráficos ilícitos na
carga”.
Tal como todas as
entidades públicas, tem um Plano de Gestão de Riscos de Corrupção e Infrações
Conexas, que “abrange o conjunto das suas áreas de atuação e procedimentos,
designadamente os controlos à entrada, saída e circulação de mercadorias no
território nacional, os tráficos ilícitos e o controlo de viajantes”.
Sylvie Figueiredo
acha que é preciso ir mais longe. “O Índice Global do Crime Organizado no mundo
mostra que o mercado da cocaína é o principal mercado do crime organizado em
Portugal. Para termos uma ideia, em termos de montantes, no mercado grossista a
droga apreendida cá em 2022 valeria cerca de 600 milhões de euros, o
equivalente ao montante da linha de crédito disponibilizada pelo governo português
às empresas para fazerem face à crise do setor energético.”
Prevê no futuro
próximo uma “continuidade desta tendência de crescimento dos volumes detetados
em Portugal e da atividade dos grupos criminosos no nosso país, em face dos
crescentes volumes disponíveis da produção mundial e do crescente número de
grupos ativos na América Latina e na Europa, por muito boa e eficaz que esteja
a ser a cooperação europeia e internacional das autoridades neste combate”.
Entende que “há
um desafio importante pela frente nesta área: a inserção do tráfico de
estupefacientes (esfera da investigação e da repressão) como crime prioritário
na nova Lei de Política Criminal é um passo importante, mas receio que possa
não ser o suficiente. Creio que seria importante para Portugal estabelecer uma
estratégia que priorize o combate ao crime organizado, como já têm, por
exemplo, Espanha, Reino Unido ou Estados Unidos”.
Preocupa-a o
alastrar da violência e questiona se “será suficiente” o reforço de polícias e
tecnologias, como anunciado na Bélgica: “Não será altura de os poderes
políticos assumirem este combate como estratégico, para segurança das
populações, da economia e da democracia?”, questiona.
O consumo regular
de cocaína provoca graves problemas de saúde, como a dependência, distúrbios
mentais e de saúde, assinala o relarório da Europol atrás referido.
Segundo ainda
este documento, com base em dados de 20 países estima-se que houver 473 mortes
relacionadas com a cocaína em 2020, uma valor que “pode estar subestimado porque
dados de alguns países-chave não estão disponíveis”.
Em Portugal, de
acordo com o Relatório sobre a Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependência em 2021, as mortes por overdose aumentaram 45% sobretudo com
cocaína e metadona. O documento destaca também que o número de mortes por
‘overdose’ com cocaína (51%) foi o mais elevado desde 2009.
Fonte: Diário de Notícias
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