O
Córtex também possui acesso em poucos segundos a diversos bancos de dados com
informações sigilosas
Sem alarde, o
Ministério da Justiça está expandindo uma das maiores ferramentas de vigilância
e controle de que se tem notícia no Brasil. Trata-se do Córtex, uma tecnologia
de inteligência artificial que usa a leitura de placas de veículos por milhares
de câmeras viárias espalhadas por rodovias, pontes, túneis, ruas e avenidas
país afora para rastrear alvos móveis em tempo real.
O Córtex também
possui acesso em poucos segundos a diversos bancos de dados com informações
sigilosas e sensíveis de cidadãos e empresas, como a Rais, a Relação Anual de
Informações Sociais, do Ministério da Economia. A poucos cliques, oficiais
podem ter acesso a dados cadastrais e trabalhistas que todas as empresas têm
sobre seus funcionários, incluindo RG, CPF, endereço, dependentes, salário e
cargo.
Em tese, é uma
ferramenta poderosa de combate ao crime. Na prática, o sistema pode ser usado
para monitoramento e vigilância de cidadãos, organizações da sociedade civil,
movimentos sociais, lideranças políticas e manifestantes, em uma escala sem
precedentes.
O Ministério da
Justiça, oficialmente, nega que o sistema seja integrado à base de dados do
Ministério da Economia. Mas não é o que mostra um vídeo enviado ao Intercept
por uma fonte anônima.
Na gravação,
feita em abril deste ano, o capitão da Polícia Militar de São Paulo Eduardo
Fernandes Gonçalves explica como usar a ferramenta. Desde 2018 cedido pelo
governo de São Paulo à Seopi, a Secretaria de Operações Integradas da
Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Fernandes
demonstra a facilidade em se cruzar informações a partir de um registro de
placa de carro. A Rais está entre as bases de dados da demonstração.
“O que é
interessante aqui? Que, com base no CNPJ, eu recupero a relação de todos os
funcionários que trabalham hoje na empresa”, diz Fernandes na apresentação.
“Cruzando essas informações aqui com as bases de CPFs, que os senhores também
terão à disposição, dá para ter uma relação bem rápida de onde essa pessoa
mora”.
Os agentes
conseguem a partir da placa do carro saber toda a sua movimentação pela cidade,
com quem você se encontrou, quem te acompanhou nos deslocamentos e quem te
visitou. Também podem cruzar esse histórico com informações pessoais e dados de
emprego e salários, incluindo boletins de ocorrência e passagens pela polícia.
No vídeo, o que
se vê é uma ferramenta poderosa que está à disposição de milhares de pessoas
das forças de segurança e setores de inteligência dos governos federal,
estaduais e até municipais, tudo sem critérios claros de controle sobre seu
uso. A fonte que enviou o vídeo ao Intercept, que não se identificou por medo
de retaliações, estima que cerca de 10 mil servidores tenham acesso ao sistema.
A Seopi, que
desenvolveu o Córtex, era um setor do Ministério da Justiça praticamente
desconhecido até julho, quando a existência de um dossiê de inteligência contra
policiais e professores ligados a movimentos antifascistas produzido ali veio a
público. O diretor de Inteligência da Seopi, Gilson Libório, um dos
responsáveis diretos tanto pelo Córtex quanto pelo dossiê secreto, foi
exonerado depois que o caso virou um escândalo e passou a ser investigado pelo
Ministério Público Federal. Em decisão plenária, os ministros do STF decidiram
mandar o ministério suspender a produção de dossiês por motivações políticas.
Mas o Córtex continua em expansão.
O sistema foi
usado pela Seopi nas cinco cidades-sede da Copa América no ano passado, nas
eleições e no Enem de 2018. Hoje conta com pelo 6 mil câmeras, de acordo com
declarações do ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, em cuja gestão foi
implantada a tecnologia.
Quem, quando e onde em dois segundos
No sistema,
quando um “alvo móvel” é cadastrado e passa por uma câmera com capacidade de
leitura de placas, leva dois segundos para os agentes de inteligência ou
policiais interessados serem avisados até por push no app do celular. A partir
daí, é possível realizar uma série de tarefas: continuar monitorando o alvo,
mandar o policial mais próximo tentar abordá-lo ou cruzar as informações do
veículo e seu dono com diversas outras à disposição do governo federal.
No vídeo enviado
ao Intercept, Fernandes, o PM escalado para o treinamento, deixa clara a
facilidade em operar o sistema e cruzar os dados. Tudo pode ser feito direto
pelos agentes, antes de qualquer autorização judicial.
O vídeo mostra
que são acessíveis com o Córtex bancos de dados do Denatran, o Departamento
Nacional de Trânsito; o Sinesp, Sistema Nacional de Informações de Segurança
Pública; o Depen, Departamento Penitenciário Nacional; o cadastro nacional de
CPFs; o cadastro nacional de foragidos; o de boletins de ocorrência; e o banco
nacional de perfis genéticos; além do Alerta Brasil da Polícia Rodoviária
Federal e do Sinivem, o Sistema Integrado Nacional de Identificação de Veículos
em Movimento.
Questionado, o
ministério da Justiça negou que o Cortex tenha acesso à Rais, a base de dados
do ministério da Economia. Não é o que se vê no vídeo de uma hora, um minuto e
48 segundos. Ali, Fernandes dá até um exemplo: com a ajuda do Córtex, ele
acessa todas as informações dos funcionários da concessionária do aeroporto de
Viracopos, em Campinas, diz quantos funcionários a empresa tem e começa a
esmiuçar alguns nomes.
Na gravação, ele
abre uma planilha com todos os funcionários da empresa – com dados com CPFs e
datas de nascimento –, e afirma ser possível saber quais deles transitaram pela
cidade de Guarulhos no dia 10 de janeiro.
Funcionário
público do governo de São Paulo cedido para o Ministério da Justiça, Fernandes
trabalha desde pelo menos 2018 na área de inteligência do governo. Lá, trabalha
na diretoria de tecnologia, onde recebe mais de R$3 mil acrescidos ao seu
salário de policial para participar de um “grupo de trabalho responsável por
elaborar propostas de soluções tecnológicas”. Nas contas do governo federal, é
um servidor “mobilizado”. Nas redes sociais, é um fã incondicional do
presidente Bolsonaro.
“Jogando aqui,
fazendo a consulta, tem uma placa aqui, ele pertence a um funcionário da
empresa que administra o aeroporto, e transitou em Guarulhos nesse dia”, diz o
PM no vídeo, mostrando detalhes do deslocamento do funcionário, que inclui
avenidas, sentido e horário. “Às 20 horas ele tava no sentido bairro-centro,
então ele tava voltando”, diz Fernandes. “Aí vai a criatividade. Joga a placa
do carro, levanta itinerário, quem tava junto, levanta. Ou melhor, pega a placa
do carro, vai pro CPF do proprietário, vai pra Rais, vê onde trabalhava, vê
quem trabalhou junto”, disse.
Os dados dos
alvos ficam armazenados por dez anos e o índice de acerto nas leituras é de
92%, segundo a demonstração em vídeo da tecnologia.
De acordo com a
fonte anônima que enviou o material ao Intercept, cerca de 10 mil pessoas da
Abin, a Agência Brasileira de Informação, ministério da Justiça, PRF, PF, PMs
estaduais, Polícia Civil e até guardas municipais possuem acesso ao sistema.
Questionado, o Ministério da Justiça não confirmou nem desmentiu.
No tutorial,
Fernandes afirma que todos os movimentos dentro do Córtex ficam registrados e
são auditáveis. “Se houver algum tipo de desvio nesse uso, o profissional que
fez isso vai sofrer as consequências do cadastro indevido”, alerta o agente no
vídeo. Apesar disso, ele não explica que consequências seriam essas e quem
fiscaliza o uso do sistema pelos milhares de usuários com acesso simultâneo. Na
prática, a operação do Córtex e o próprio trabalho da Seopi não possuem regras
claras e estão cercados de sigilo.
O embrião do que
viria a se tornar o Córtex surgiu ainda no governo Dilma Rousseff, com a
criação do Sinesp, Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública,
Prisionais e Sobre Drogas. A iniciativa pretendia unir em um único sistema
informações de bancos de dados estaduais como boletins de ocorrência, veículos
com alerta de furto e roubo, presos e foragidos.
Pouco antes a
Copa do Mundo de 2014, o governo federal lançou o Centro Integrado de Comando e
Controle Nacional, que reunia representantes e informações das secretarias de
segurança pública das cidades-sede do evento e imagens em tempo real de câmeras
viárias e de segurança espalhadas por estas cidades. A principal preocupação do
governo era a eventual ação de grupos terroristas, crime organizado e
manifestações que colocassem em risco o evento como as que aconteceram no ano
anterior.
Já em 2015, um
decreto da presidente sistematizou, ampliou e oficializou o uso do Alerta
Brasil — criado pela PRF em 2013, também em meio aos investimentos em segurança
pública para o mundial de futebol da Fifa.
Em 2018, já no
governo do presidente Michel Temer, foi aprovada a lei que criou o Susp. A
partir dali, ficou estabelecido o compartilhamento com a Secretaria de
Segurança Pública do Ministério da Justiça de uma série de bancos de dados até
então separados das secretarias de segurança pública dos estados. Quem não
cumpre fica sem o repasse de recursos federais para a área de segurança
pública.
Até o final do
ano passado, de acordo com informações da PRF, pelo menos 12 estados
compartilhavam suas câmeras com o Córtex: Santa Catarina, Paraná, Rio de Janeiro,
Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás, Distrito Federal, Rondônia, Acre,
Amazonas, Roraima e Amapá. Destes, as secretarias de segurança pública de RJ,
SC, AP, AC, GO, MT e RR e DF estavam conectadas com o Córtex.
Além dos governos
estaduais existem parcerias — e acesso às câmeras — direto com os municípios.
No final de 2017,
por exemplo, a Prefeitura de Atibaia, em São Paulo, anunciou que suas câmeras
viárias leitoras de placas passariam a fazer parte do Alerta Brasil, sistema de
monitoramento de placas criado pela Polícia Rodoviária Federal em 2013.
O braço de vigilância do Ministério da Justiça
O Alerta Brasil
foi uma das tecnologias precursoras do Córtex. Em setembro do ano passado, o
então ministro da Justiça, Sergio Moro, disse no Twitter que os dois sistemas
estavam completamente integrados.
“A unificação dos
sistemas de monitoramento viário Alerta Brasil 3.0 da PRF e Cortex da SEOPI,
ambos do MJSP, levará à redução de custos e a criação de um sistema integrado
com seis mil pontos de monitoramento no país”, afirmou Moro. “Às vezes,
integrar exige só olhar para quem está do seu lado”. Hoje, inúmeras cidades
fazem parte do sistema, que recebe também as imagens de concessionárias de
rodovias estaduais, vias urbanas e rodovias federais.
Questionado, o
Ministério da Justiça não informou o número exato de parcerias com governos
estaduais e municipais para o uso da ferramenta. Sobre isso, disse apenas que
“é importante ressaltar que o sistema está sendo desenvolvido com o trabalho de
técnicos do Ministério da Justiça e Segurança Pública, além das contribuições
dos usuários dos estados que aos poucos são inseridos no contexto do sistema”.
E que o custo mensal da infraestrutura necessária para suportar o Córtex é R$
30 mil.
A Seopi, braço de
inteligência do Ministério da Justiça hoje responsável pelo sistema, foi criada
no início da gestão de Sergio Moro no Ministério da Justiça. O decreto número
9.662, editado pelo presidente Jair Bolsonaro em seu primeiro dia de mandato,
atribui à secretaria a produção de serviços de inteligência. Assim, a Seopi age
de maneira análoga a outros órgãos de inteligência como a Abin, a Agência
Brasileira de Inteligência; o GSI, Gabinete de Segurança Institucional; e o
Centro de Inteligência do Exército, o CIE. E, assim como eles, não são
obrigados a passar por um controle externo do Ministério Público, congresso ou qualquer
instância da justiça.
‘Não dá para
dizer que o uso atual do Córtex é ilegal hoje em termos jurídicos, mas dá para
afirmar que é profundamente problemático e potencialmente ilegal’.
A missão do órgão
é produzir inteligência para combate ao crime organizado. Um exemplo deste tipo
de ação foi a transferência das principais lideranças da facção criminosa
Primeiro Comando da Capital de presídios paulistas para penitenciárias
federais, no início do ano passado.
Além disso, como
revela a existência do dossiê sobre os antifascistas, a Seopi vem sendo
utilizada também com fins políticos. Por meio da secretaria, o ministério
produziu em sigilo neste ano uma espécie de lista com nomes, endereços nas
redes sociais e fotografias de 579 servidores públicos da área de segurança
pública e três professores universitários, todos críticos ao governo Bolsonaro,
ligados a movimentos antifascistas. O material circulou na PF, CIE e Palácio do
Planalto.
Após a existência
do dossiê vir a público, Moro afirmou que o monitoramento de opositores do
governo não acontecia quando ele era ministro. “A Seopi produz inteligência e
operações, na minha época focadas em combate ao crime organizado, crime
cibernético e crime violento”, afirmou o ex-ministro. “Esses relatórios ora
controvertidos não são do meu período”.
Na infame reunião
ministerial do dia 22 de abril, Bolsonaro reclama bastante das informações de
inteligência que recebia oficialmente. “O nosso serviço de informações, todos
eles, são uma vergonha, uma vergonha!”, bradou o presidente no encontro. “Eu
não sou informado! E não dá para trabalhar assim, fica difícil. Por isso, vou
interferir! E ponto final”.
No total, a Seopi
é composta por quatro diretorias e dez coordenadorias. Quando assumiu a pasta
da Justiça após a saída de Moro, o ministro André Mendonça trocou nove das 13
pessoas que chefiavam estes órgãos. Os nomeados por Mendonça foram os
responsáveis pelo dossiê contra antifascistas – e também cuidam do Córtex.
Tecnoautoritarismo
Não há uma lei,
decreto, portaria ou qualquer norma oficial pública que regulamente o uso do
Córtex dentro da Seopi. Perguntei ao Ministério da Justiça quais as normativas
legais, os dispositivos de controle e quem fiscaliza seu uso. O governo se
limitou a dizer que o Córtex opera de acordo com o Sistema Único de Segurança
Pública, que determina o intercâmbio de informações entre órgãos, mas não
estabelece limites e proteção à privacidade.
“Não dá para
dizer que o uso atual do Córtex é ilegal hoje em termos jurídicos, mas dá para
afirmar que é profundamente problemático e potencialmente ilegal”, me disse
Rafael Zanatta, advogado e pesquisador do Lavits, a Rede Latino Americana de
Estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade. “Eu também não sei, como
pesquisador, o que eles fazem. Existe um problema fundamental aí de opacidade.
Isso já é um ponto de partida muito problemático”.
A Lei Geral de
Proteção de Dados, que entrou em vigor em agosto de 2018, prevê o uso de dados
pessoais dos cidadãos para atividades de segurança pública, segurança nacional
e investigação criminal – mas não de maneira indiscriminada. “A LGPD deu um
passo importante que foi separar isso em alíneas. Segurança pública é uma
coisa, segurança nacional é outra, atividades de investigação é outra. Ter essa
clareza e separação de poderes é muito importante”. A lei de proteção de dados
prevê que o uso de dados para fins de segurança deverá ter regulamentação
própria, que ainda não existe.
Para o
pesquisador, o livre compartilhamento de bases de dados sigilosos de entes
governamentais diferentes foge ao princípio da finalidade e insere-se em uma
discussão global sobre “tecnoautoritarismo”. “É um termo novo para um problema
antigo. Essa preocupação das capacidades de vigilância e uso de tecnologias
para segurança e vigilância é um tema clássico”, afirma. “Existe um processo
muito amplo de contestação disso no mundo todo”. Na Europa e nos EUA,
exemplifica, a adoção de novas tecnologias de vigilância é discutida publicamente,
e há separação jurisdicional entre informações sob guarda de entes
governamentais diferentes.
O Ministério diz
que a Seopi usou o Córtex nas operações de segurança das eleições em 2018,
Operações Luz na Infância 5 e 6 (que resultou na prisão de mais de 90 pessoas
acusadas de crimes sexuais contra crianças e adolescentes), assim como no
“monitoramento nacional dos impactos da Covid-19 para a segurança pública.” E
que “a integração de informações de monitoramento urbano permite a detecção de
veículos com indicativo criminal registrado, como furto e roubo para emprego
exclusivo nas atividades de segurança pública para repressão ao crime
organizado e criminalidade violenta”.
Fonte: The Intercept Brasil - Autor: Aiuri Rebello@aiurirebello – Saiba mais visitando o site.
Qual o contato, e-mail, do suporte do sistema CORTEX? Obrigado.
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