Pescadores, assustados, sofrem ameaças: o retrato de uma
baía em que o crime avança mar adentro e ocupa várias ilhas
Embora
poluídas, as praias da Luz e de São João, em Itaoca, São Gonçalo, costumavam
ser áreas de lazer movimentadas à beira da Baía de Guanabara. Hoje, tornaram-se
fortalezas do tráfico armado. Visitantes, pescadores e barqueiros desapareceram
das barracas que vendiam peixe frito e cerveja gelada. É o retrato de uma baía
em que o crime avança mar adentro e ocupa até pequenas ilhas, antes refúgios
paradisíacos. O espelho d’água, cercado por sete municípios e com 400
quilômetros quadrados, virou território sem controle, esconderijo e rota para
armas e drogas.
Este
ano, operações das forças de segurança apreenderam embarcações e chamaram a
atenção para o que, até então, se espalhava na surdina. Em junho, a Polícia
Civil interceptou uma traineira que havia saído da Vila dos Pinheiros, na Maré,
em direção à Praia Vermelha, na Urca, para recuperar fuzis usados na guerra de
facções do Leme. Dias depois, foi a vez de a Polícia Federal encontrar um barco
pesqueiro com 336 quilos de cocaína, perto de Niterói. A Marinha prometeu
implantar, até o fim deste ano, um monitoramento especial da Baía de Guanabara.
Ao que tudo indica, o que apareceu foi só a ponta de um iceberg.
A Rotado Crime
O
tráfico de armas e drogas na Baía, segundo os relatos, abastece favelas como
Dendê, Salgueiro, Kelson’s, Praia da Rosa, Bancários, Barbante, Beira-Mar e o
Complexo da Maré.
Fuga pelo mar
Até
órgãos ambientais federais deixaram de atracar em Itaoca (que já foi uma ilha)
devido ao risco de terem seus barcos “abatidos” por traficantes, segundo um
funcionário do Instituto Chico Mendes. O manguezal da região, parte dele
localizado dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, serve de
covil de criminosos do Complexo do Salgueiro. Quando há operações na
comunidade, bandidos muitas vezes fogem, a bordo de pequenos barcos, para ilhas
próximas.
A
de Itaoquinha, de propriedade de uma empresa do ramo naval, foi invadida ao
menos quatro vezes este ano.
—
Como chegam fortemente armados, não podemos fazer nada, a não ser evitar um
conflito. Normalmente, eles saem do Porto de São Gonçalo, que acabou abandonado
com a paralisação das obras do Comperj — diz um representante da empresa, que
pôs a ilha à venda.
Outras
ilhotas são invadidas com frequência, entre elas as Tapuamas de Fora e de
Dentro — esta última conhecida como Ilha do Sol, que até hoje abriga ruínas da
casa da vedete Luz del Fuego, sucesso na metade do século passado. Nos
escombros do primeiro reduto naturista do país, em meio a centenas de
pichações, as iniciais de uma facção do tráfico foram talhadas numa parede.
Perto
dali, a Ilha de Jurubaíba, com duas praias de areias brancas, atrai famílias e
grupos de amigos, sobretudo no verão. Porém, enquanto construções irregulares
tomam o lugar, a paz começa a se despedir daquele recanto com vista para o Dedo
de Deus.
—
É um paraíso. Mas fica perto de Itaoca e do Salgueiro. Quando tem operação
policial, os traficantes fogem e se escondem em ilhas como Jurubaíba. Fica
perigoso para nós, pescadores. Não tem como levarmos um parente, um amigo para
passear — diz um morador de Paquetá, pedindo para não ser identificado.
Atividade que sobrevive. Mesmo prejudicados
pela persistente poluição e, muitas vezes, acuados pelo crime organizado,
pescadores resistem: eles têm cinco colônias espalhadas pela Baía de Guanabara,
além de várias associações - Custódio Coimbra / Agência O Globo
Ele
conta que o medo é tanto que os pescadores não saem para o mar quando ouvem o som
de helicópteros da polícia:
—
Não paro o barco em ilha alguma se vejo alguém nela. Mesmo não sabendo se é
bandido. Prefiro não arriscar.
Com
pouca fiscalização, pescadores que tiram o sustento da Baía de Guanabara acabam
acuados, reféns ou aliciados pelo crime. Na Ilha do Governador, muitos têm sido
obrigados por traficantes a transportar armas e drogas em áreas como Galeão,
Praia da Rosa e Bancários.
—
Ou carregamos o material ilícito ou ameaçam até nossas famílias — conta um dos
pescadores, que teme se identificar.
Paraísos na Baía da Guanabara
No município do Rio, as áreas próximas à Favela da Kelson’s, na Penha, e à Praia de Ramos também são temidas, assim como a região de Piedade, em Magé, e os rios que deságuam na Baía, como o Guaxindiba, na divisa de São Gonçalo com Itaboraí.
Investigações
do Grupo de Ação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério
Público do Rio apontaram que armas chegam à Guanabara em navios e são
descarregadas em barcos menores, antes de sua distribuição em comunidades.
Alguns dos destinos são o Salgueiro, em São Gonçalo, o Morro do Dendê, na Ilha
do Governador, e a Favela Beira-Mar, em Duque de Caxias.
Um
pescador conta detalhes do esquema. Segundo ele, as mercadorias também podem
ser buscadas em embarcações perto de ilhas em mar aberto, como as Cagarras, na
Zona Sul do Rio, ou a Pai e Mãe, em Itaipu, Niterói.
—
Normalmente, são traineiras que encostam nos navios para carregar o material. É
possível colocar cinco toneladas de armas ou drogas dentro delas, misturadas a
gelo e peixes, sem que o peso extra seja percebido. Em alguns casos, o produto
é jogado dos navios no mar, com uma espécie de sinalizador que boia, e depois
embarcações de porte médio recolhem tudo — diz o pescador, observando que o
carregamento também pode ser desembarcado com a ajuda de outras estratégias. —
Às vezes, o material é transportado em quantidades reduzidas, em embarcações
menores. Aí entra a coação ou a participação espontânea de pequenos pescadores.
Vinte quilos de cocaína podem ser desembarcados até numa sacola.
Milícia também preocupa
Com
estruturas de alvenaria abandonadas, pelo menos duas ilhas também são usadas
como depósitos temporários para quadrilhas: a Seca, perto da Ribeira (na Ilha
do Governador), e a de Pancaraíba, mais próxima de Brocoió (uma das residências
oficiais do governador do Rio).
E
não é só o tráfico que aflige os pescadores. Eles reiteram uma denúncia do
GLOBO, publicada em setembro, de que uma milícia marítima extorque dinheiro dos
que não têm o Registro Geral de Atividade Pesqueira (RGP). Esse grupo é
obrigado a pagar para não perder suas redes nem ser levado a uma delegacia.
Com
esses riscos no horizonte, nos últimos meses quem navega pela Baía constata que
houve aumento na fiscalização da Marinha, da Capitania dos Portos e da Polícia
Federal. Muitos barqueiros, no entanto, se queixam de que as ações, na maioria
das vezes, acontecem de dia e perto da Ponte Rio-Niterói ou do Porto do Rio,
enquanto o fundo da Baía fica desguarnecido.
É
à noite, porém, que a maioria dos crimes acontece, dizem os barqueiros. E a
movimentação não se restringe à do tráfico. É o auge também de atividades de
pirataria, roubo de óleo diesel e pesca ilegal.
Numa
ilha próxima a terminais da Petrobras, no centro da Baía, dois vigias, um em
cada turno, ficam 24 horas de plantão para tentar impedir que ladrões roubem
peças de uma embarcação atracada. Eles não atuam armados porque isso aumentaria
o perigo.
—
Sozinho aqui, de que adiantaria uma arma? Eles nos matariam. O risco é comum.
Já passei por várias situações tensas. Às vezes, passam atirando, e houve
situações em que nos amarraram — diz o segurança.
No
caso do tráfico, as informações são que, há pelo menos cinco anos, parte dessas
ilhas estão sob poder de criminosos. Ex-secretário estadual do Ambiente, o
deputado Carlos Minc (PSB) afirma que, quando comandava a pasta, tentou usar
algumas delas como bases para o desmonte de embarcações fantasmas que eram retiradas
da Baía. Naquela época, representantes do órgão foram alertados sobre a
circulação de pessoas armadas.
—
Pescadores avisaram para tomar cuidado, porque as ilhas vinham sendo ocupadas
por traficantes. Eram ilhas perto de São Gonçalo e duas ou três pequenas
próximas à Maré e à Ilha do Governador — diz o ex-secretário, contando que a
operação de remoção dos navios abandonados tinha não só um propósito ambiental,
mas também de segurança.
De
acordo com Minc, essas embarcações eram utilizadas ainda como refúgio de
criminosos. À beira da Rodovia Niterói-Manilha, é possível avistar algumas
delas.
Apesar
de todos os relatos, o delegado Felipe Curi, titular da Delegacia de Combate às
Drogas (Dcod), diz que não há inquéritos sobre a ocupação das ilhas por traficantes.
A Polícia Federal, por sua vez, não comenta possíveis investigações.
Reforço Aguardado
A Marinha, por meio do Comando do 1º Distrito Naval, informa que, com seu novo projeto, será possível realizar o monitoramento de todos os acontecimentos no interior da Baía. Serão instalados “sites radares”, com operação remota, a partir de quatro centros de comando. Será uma iniciativa piloto do Sistema de Gerenciamento da Amazônia Azul, que está na primeira fase de desenvolvimento. O projeto, informa a Marinha em nota, permitirá realizar, de forma ágil, a integração com a Polícia Federal, a Receita Federal e o Ibama: “Nesse sentido, a Marinha combina esforços constantemente com órgãos de segurança pública, em operações como a deflagrada pelo Comando Conjunto em 29 de agosto, no Complexo do Salgueiro, onde foram empregados 2.520 militares das Forças Armadas”.
O
cumprimento da promessa da Marinha resguardaria lugares com belezas que
resistem a décadas de degradação. E com segredos ainda a serem revelados, como
ruínas supostamente do período colonial, encontradas pelo arqueólogo Claudio
Prado Mello, do Instituto de Pesquisa Histórica e Arqueológica do Rio (Ipharj),
na Ilha do Catalão, no Fundão:
—
A Baía é cheia de histórias. A gente sabe de crimes em praias, invasões em
ilhas... Mas também é um ecossistema importantíssimo.
Fonte:
Jornal O Globo -RJ
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