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quarta-feira, 13 de setembro de 2023

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NARCOTRAFICANTES BRASILEIROS ENVIAM COCAÍNA PURA À EUROPA PELA ÁFRICA PARA EVITAR FISCALIZAÇÃO MAIS RIGOROSA

 

Depois de chegar à costa ocidental da África, droga atravessa o continente por via terrestre ou segue em lanchas mais velozes pelo oceano

A mensagem no celular trazia a localização desejada exata: 09°56’37.79” N e 021°06’38.18” W. “Aqui dá pra ir”, respondeu o interlocutor. “Tá bom, irmão, quantos dias para chegar?”, perguntou o contratante. “Uns 15”. O diálogo entre um brasileiro acusado por tráfico internacional de drogas e seu encarregado da logística marítima foi interceptado pela Polícia Federal. As coordenadas geográficas dão em um ponto do Oceano Atlântico no Golfo da Guiné, a 300 km da costa africana. 

Segundo relatórios da PF obtidos pelo GLOBO, há “indícios concretos” de que a organização criminosa liderada por André Luiz Miranda do Nascimento, o Andrezão, enviou toneladas de cocaína por esse trajeto em setembro, após as tratativas. Era só uma remessa-teste para futuras empreitadas maiores, segundo o órgão.

— Este barco pesqueiro saiu de Itajaí, em Santa Catarina, carregou no Rio e foi em direção à África. Será que estava carregado de droga? Não dá para ter certeza. É como dizemos aqui: Avon [marca de cosméticos] é que não estavam vendendo — brincou Cléberson Alminhana, titular da Delegacia de Repressão a Drogas do Rio Grande do Sul, responsável pela investigação.

Na tentativa de driblar as autoridades, narcotraficantes brasileiros estão adotando a rota africana para enviar cocaína pura de países como Bolívia, Colômbia e Peru à Europa. Na costa de nações como Senegal, Serra Leoa e Guiné-Bissau, organizações criminosas fazem o transbordo da droga para navios menores para enviá-la ao continente europeu, segundo a PF. Dois meses após a primeira remessa, o grupo repetiu a operação, dessa vez sem sucesso. 

Em 30 de novembro passado, um navio da Marinha Francesa abordou a embarcação brasileira Peroá perto das mesmas coordenadas geográficas, perto de Serra Leoa. O barco pesqueiro de 21 metros levava 4,6 toneladas de cocaína em cerca de cem malas — o equivalente a quase R$ 800 milhões. A operação foi um trabalho conjunto da PF, da Drug Enforcement Administration (DEA), da Agência da União Europeia para a Cooperação Policial (Europol) e de autoridades francesas.

Depois da abordagem na costa africana, a droga foi incinerada a bordo, segundo a investigação. Os cinco tripulantes brasileiros, assim como a embarcação, foram liberados pela Marinha Francesa. Não havia nenhum celular ou telefone satelital no barco, levando à suspeita de que os aparelhos foram arremessados em alto-mar. No relatório da PF, fotos feitas pela Marinha mostram cada tripulante segurando uma folha sulfite com sua respectiva profissão no Brasil: pescador, motorista, mecânico, motoboy e garçom. 

O delegado Alminhana afirma que a Marinha Francesa, até “por uma questão humanitária”, permitiu aos tripulantes abastecer o barco para voltarem ao Brasil e doou mantimentos para a viagem de volta.

— Por que não foram presos? Também fizemos essa pergunta. A explicação foi: para que essas pessoas sejam julgadas pela Justiça francesa, elas teriam de ter ido a um porto francês. Como a abordagem foi em águas internacionais, não seria possível. Todo mundo faz isso? Os americanos prendem e afundam o barco — comentou Alminhana.


Tripulação está Livre

Nem investigadores nem a Marinha acompanharam o retorno dos tripulantes. Havia suspeita de que teriam retornado ao Brasil por Pernambuco ou Paraíba, abordados e ouvidos pelas autoridades locais — hipótese negada pelas polícias federais de ambos. Todos os tripulantes estão soltos, e não há mandados de prisão no banco do Conselho Nacional de Justiça. Como de costume, eles não eram os donos da droga, só foram aliciados para levá-la ao destino, as chamadas mulas. O GLOBO localizou os perfis de quatro dos cinco tripulantes em redes sociais e entrou em contato, sem resposta. Pelo Facebook, é possível saber que um deles se casou em julho, com direito a troca de declaração de amor pública.

— Para nós, ir atrás hoje da tripulação é de menor importância. A gente quer saber quem é o dono. Esses caras são o trabalho braçal, não têm poder de mando. Normalmente, são recrutados nos morros e vão para ganhar uma grana. [Se ouvidos] Abririam a boca até que ponto? O que eles conhecem? — justificou Alminhana ao ser questionado.

Estratégias envolvem logística pela terra e pelo mar

O exigente e lucrativo mercado europeu ainda é o grande alvo das quadrilhas brasileiras — ali, um quilo da cocaína “tipo exportação”, assim denominado pelo índice de pureza (acima de 90%), chega a ser vendido por US$ 45 mil, segundo informações da Polícia Federal. Nações africanas, agora, têm entrado no radar desses bandos.

Sob condição de anonimato, um integrante brasileiro da Europol afirma que há duas modalidades de envio de droga do Brasil à África: por barcos ou via mulas que embarcam em aviões. A operação via marítima é lucrativa a partir do envio de, pelo menos, uma tonelada de cocaína, segundo ele. Já o tráfico por aeronaves, com a droga escondida na pessoa ou mala, leva quantidades menores, mas pode render o mesmo.

— A África, em geral, é apenas o entreposto. Parte da droga fica ali, mas o destino da maioria ainda é Europa e Ásia — disse, ressaltando que o Brasil tem pouca informação sobre a relação das quadrilhas daqui com as africanas por falta de cooperação com o continente. — Somos um pouco cegos em relação à África.

Na impossibilidade de guardar seus 16 mil quilômetros de fronteira e impedir a entrada da cocaína, o Brasil passou a investir na fiscalização da saída da droga, em especial nos portos. Desde abril de 2016, uma portaria da Alfândega da Receita Federal do Porto de Santos, o maior da América Latina, determinou que todo contêiner com destino a países europeus fosse escaneado. Em 2019, um novo texto incluiu a fiscalização obrigatória das cargas para a África. Naquele ano, o Brasil registrou o recorde de apreensões de cocaína em seus portos (66,9 toneladas), seguido de quedas consecutivas, em decorrência principalmente da pandemia de Covid-19 e o consequente fechamento de bares, baladas e redução do consumo. Foi quando três representantes da África Ocidental entraram para a lista das dez principais nações destinatárias: Nigéria, Gana e Serra Leoa. Foram apreendidas 3,7 toneladas de cocaína que iriam para os três países, aponta a PF em levantamento a pedido do GLOBO.

Estrutura empresarial

A ineficácia dos órgãos de fiscalização e controle, assim como a corrupção de políticos, explica a preferência dos bandidos pela rota da África Ocidental, segundo especialistas. O delegado Elvis Secco, ex-coordenador-geral de Repressão a Drogas, Armas, Crimes contra o Patrimônio e Facções Criminosas da PF, ressalta que o fechamento das fronteiras na pandemia gerou um estoque excedente de drogas na América do Sul e na África. Diante disso, diz, produtores e traficantes de cocaína e haxixe tentam encontrar uma saída para escoar as mercadorias ilícitas aliando-se a organizações criminosas da Europa Oriental. Tratam-se de redes especializadas em transporte marítimo que, para escapar da vigilância e da pressão policial no Estreito de Gibraltar, exploram o chamado “Túnel do Sahel”, rota do narcotráfico que atravessa o continente africano para levar a droga à Europa:

— Essas organizações criminosas têm vastos recursos financeiros obtidos por meio da lavagem de dinheiro do tráfico, dominam o sistema financeiro e instalam uma estrutura empresarial no mercado local do continente onde operam. Assim, conseguem contratar a melhor assessoria jurídica possível, permeando o sistema com práticas de corrupção .

Segundo Secco, os criminosos que atuam na rota africana são “altamente especializados”, com grande conhecimento de navegação. Já têm representantes nos países produtores de cocaína da América do Sul e usam o Suriname, a Guiana Francesa e o Brasil como pontos de saída da droga. Em seguida, desembarcam nas costas de países como Senegal, Gâmbia, Guiné-Bissau, Guiné, Serra Leoa e Libéria. De lá, cruzam o continente africano até a Líbia ou o Egito, onde embarcam o entorpecente até a Turquia para ganhar mercado europeu.

Além de seguir pelo continente, outra possibilidade é enviar a droga à Europa via oceano. O delegado Fabrizio Galli, chefe da Delegacia de Repressão a Drogas da Polícia Federal de São Paulo, combate o tráfico de entorpecentes pelo órgão há 20 anos e já apreendeu algumas toneladas de cocaína no percurso via África.

— É mais seguro mandar por ali, há menos vigilância. Os traficantes vão devagar até lá e depois seguem com mais velocidade. Tem muitos casos assim, mas não conseguimos pegar. Na Europa, eles nem entram pelo porto, mas pelas praias e ilhas turísticas — detalhou.

Países frágeis

A costa da Guiné-Bissau é uma das usadas para o transbordo da droga, como mostrou a investigação. As redes de tráfico, valendo-se da instabilidade política e da violência, cooptaram líderes políticos e militares e transformaram o país num centro de comércio ilícito, sobretudo do tráfico internacional de cocaína, diz um integrante de uma missão de paz que viveu ali de 2018 a 2020.

Em setembro de 2019, o país teve sua maior apreensão de cocaína da História, pouco mais de 1,8 tonelada de cocaína, decorrente da Operação Navarra.


Carregamento de droga era escondido em cargas lícitas

As malas pretas com 4,6 toneladas de cocaína encontradas no barco pesqueiro a caminho da África eram uma das pelo menos 13 remessas de drogas enviadas à Europa pela organização criminosa liderada, entre outros, por André Luiz Miranda do Nascimento, o Andrezão, e com base no Sul do Brasil, segundo a PF. Em dois anos de investigação, o grupo mandou 17 toneladas de droga para a Europa, mercadoria estimada em R$ 3,8 bilhões.

Os relatórios da PF mostram a dinâmica do bando. O cidadão paraguaio Rodrigo Paredes Alvarenga fornecia carregamentos de cocaína comprada na Bolívia aos donos de empresas de logística marítima no Brasil, espécies de narcoempreendedores, que enviavam para a Europa. A droga entrava em território nacional pela fronteira com o Paraguai, na região de Pedro Juan Caballero e Ponta Porã, atravessava alguns estados de caminhão, logística sob responsabilidade de parceiros, até chegar ao Sul. O envio a partir dali era planejado por Nascimento, apontado como o principal contato do grupo com compradores europeus, em especial dos Bálcãs e da Península Ibérica.

As investigações afirmam que Nascimento e Alvarenga se associaram aos irmãos Cesar de Oliveira Junior e Leandro Gonçalves de Oliveira, proeminentes empresários do Sul, membros da alta sociedade gaúcha. Empreendedores do ramo da logística portuária, eles são proprietários de um conglomerado de companhias no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o complexo CTIL/INTERSUL, que funcionava como um dos canais de envio da droga via portos. Segundo o delegado Cléberson Alminhana, a empresa, herança de família, passou por um boom financeiro em 2016.

— Possivelmente, a partir dali a organização criminosa começou. Se foram aliciados pelos donos da droga, ou se já faziam jogadas menores, não dá para saber. Até porque o César é empresário conhecidíssimo, a princípio acima de qualquer suspeita — explicou.

Extrato de mimosa

Nas empresas de logística dos irmãos Oliveira, a droga era inserida em contêineres de diferentes tipos de cargas lícitas — desde carvão a extrato tanante de origem vegetal — sem o conhecimento das empresas contratantes. Altemir Linhares de Melo, superintendente da Receita Federal do Rio Grande do Sul, conta que os criminosos escolhiam insumos mais propícios para mascarar a droga em controles alfandegários.

— As cargas preferenciais são as que têm composição parecida com a da cocaína. Mas a fiscalização do contêiner por scanner não tem tanta fragilidade, a droga em geral passa se houver o envolvimento de operadores portuários no processo. No caso desse grupo, esse era o diferencial. Eles gozavam da intimidade do ambiente aduaneiro — disse Melo.

A primeira pista da existência dessa rede criminosa chegou em março de 2021. A PF foi informada de que 316 kg de cocaína haviam sido apreendidos em Hamburgo, na Alemanha, em dezembro do ano anterior, acondicionados em sacas de extrato de mimosa remetidas do porto gaúcho de Rio Grande. Na cidade alemã, criminosos arrombaram o galpão onde a carga estava guardada para roubar a parte contaminada do contêiner. A polícia alemã estimou que, além dos 316 kg de cocaína apreendida, 1,7 tonelada foi levada pelos bandidos, que deixaram pelo menos 190 sacas de extrato de mimosa violadas. Com a informação da origem da droga, o porto de Rio Grande, os investigadores brasileiros voltaram os olhos para a maior empresa do local, o complexo CTIL/INTERSUL. As investigações resultaram na Operação Hinterland em março deste ano.

Conversas escancaradas

Para dissimular as grandes cifras movimentadas pelo tráfico internacional, a organização criminosa do Sul usou diversas modalidades de ocultação de capitais. Segundo a procuradora Paula Martins-Costa Schirmer, do Ministério Público Federal, que denunciou os investigados, o grupo conta com uma espécie de banco paralelo, sistemas financeiros à margem para enviar dinheiro ao exterior para pagamento de fornecedores, e com redes de pessoas jurídicas de fachada para fazer circular o fluxo financeiro.

— Existia um núcleo só com esse foco, com advogados, contadores, consultores de empresas. É um esquema complexo e sofisticado.

Uma megaoperação policial contra o tráfico internacional, coordenada pelas polícias de Bélgica, França e Holanda e deflagrada em março de 2021, acabou por definir também o futuro dos narcoempreendedores do Sul do Brasil. A operação derrubou a plataforma de comunicação criptografada Sky ECC, amplamente usada para planejar o comércio global de entorpecentes, e forneceu aos governos de dezenas de países trocas de mensagens valiosas entre criminosos.

Segundo o delegado Alminhana, a Hinterland foi a primeira operação do Brasil a se debruçar sobre mensagens do SKY ECC para chegar aos autores de crimes.

— O Sky ECC foi fundamental. Eles usam de maneira escancarada, não falam de modo codificado. É como se estivessem falando ao vivo — comentou.

Foi ao acessar as mensagens do Sky ECC que os investigadores chegaram ao principal comprador da droga da organização criminosa na Europa: o cidadão albanês Armando Pacani, ligado a um clã dos Bálcãs, segundo a PF. Pacani é apontado como o dono, entre outras remessas, das cargas enviadas via África Ocidental. Registros da imigração apontam que Pacani entrou no Brasil em janeiro de 2019 e saiu em agosto de 2020, em voo da Emirates de São Paulo para Dubai.

Enquanto o barco Peroá se preparava para partir rumo à África, Nascimento era preso em uma luxuosa propriedade rural em Villa Oliva, no Paraguai. Apontado como uma das lideranças de uma facção catarinense, ele estava foragido e tinha uma ordem de captura internacional, expedida a pedido da Justiça de Santa Catarina, pelas acusações de narcotráfico. Ele foi extraditado em outubro e está preso no Brasil. Procurada, sua defesa não retornou.

Albanês está foragido

O albanês Pacani se encontra foragido. A Europol suspeita que ele esteja em Dubai, nos Emirados Árabes. Em nota, seu advogado, Eduardo Maurício, afirmou que seu cliente é inocente e alegou que a Operação Hinterland, assim como o mandado de prisão e sua inclusão na lista de procurados da Interpol, são baseados em provas ilegais oriundas de mensagens telefônicas no Sky ECC.

Segundo Maurício, “a empresa Sky ECC afirma que as autoridades invadiram o software de comunicação de forma ilegal e abusiva, o que representa uma clara violação das normas e princípios constitucionais, sendo necessária a declaração de nulidade de toda prova”.

O paraguaio Alvarenga foi preso durante a Hinterland, em março. Sua defesa não quis se manifestar. Os irmãos Oliveira também foram presos na operação. A advogada deles não se posicionou.

A investigação foi apoiada pela Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional (Gitoc), em colaboração com jornalistas da África Ocidental. No entanto, o jornalismo é totalmente independente e a reportagem não exprime necessariamente as opiniões da Gitoc.

Fonte: O Globo - Por Aline Ribeiro — Rio de Janeiro


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