Rede que
explora clandestinamente o Porto de Santos para envio de cocaína para a Europa desafia
Operação Escudo, que ultrapassa um mês
A controversa
operação policial que o governo de São Paulo mantém há pouco mais de um mês na
Baixada Santista tenta minar, segundo autoridades de segurança, a estrutura
criada pelo crime organizado na região.
A chamada
Operação Escudo é uma das mais letais já ocorridas em São Paulo, com 24 civis
mortos desde 28 de julho. Mais de 700 pessoas já foram presas.
No entanto, a
estratégia de embate armado em áreas pobres de Santos e Guarujá têm levantado
questionamentos não apenas sobre as mortes, mas sobre a real efetividade da
operação.
Uma avaliação que
vem sendo repetida é que esse tipo de investida pode produzir efeitos momentâneos
e baixas em escalões inferiores de quadrilhas, mas que não tem poder para
abalar, de fato, a rede de criminosos instalada na região.
Santos e Guarujá
e, em menor escala, outros municípios da Baixada, têm uma característica muito particular
na economia do crime no país.
São cidades que
funcionam como uma espécie de último entreposto no Brasil do fluxo de cocaína
que é transportada em caminhões e carretas desde os países produtores na região
dos Andes e que tem como destino a Europa e o norte da África.
O Porto de Santos
— o maior do Brasil e cujos terminais ficam em Santos e Guarujá — é, segundo autoridades
brasileiras e estrangeiras, a via preferida de traficantes que usam o território
brasileiro para abastecer o bilionário mercado europeu da droga.
Com base em
estimativas feitas a partir do volume de apreensões, Santos aparece como o segundo
maior porto do mundo de onde saem navios com cocaína que chega a Europa, de
acordo com o Centro de Monitoramento Europeu de Drogas e da Dependência das
Drogas (EMCDDA na sigla em inglês), órgão da União Europeia sediado em Lisboa
que acompanha o mercado de entorpecentes no bloco. O primeiro, nesse quesito, é
o de Guaiaquil, no Equador.
Boa parte da
criminalidade local — que o governo do Estado diz que busca sufocar com a operação
especial — se organiza em torno dessas transações de remessa da cocaína dentro
de navios cargueiros.
“Estamos falando
de um sistema econômico. Não se trata de uma facção apenas, ou de uma quadrilha.
É um sistema macro, do qual fazem parte pessoas que estão aqui, que tomam
comunidades como reféns, pessoas que são capitalizadas por todo esse sistema”,
disse na semana passada ao Valor o comandante-geral da Polícia Militar de São
Paulo, o coronel Cássio de Araújo Freitas, durante uma rápida visita a Santos.
O problema é como
fazer frente a esse sistema
Desde 28 de
julho, policiais militares e civis levam adiante uma operação ordenada pelo
governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) que começou como uma perseguição
ao autor do disparo que, no dia anterior, havia matado um policial militar que
patrulhava uma área violenta do Guarujá.
Uma semana
depois, policiais já haviam matado 16 pessoas no Guarujá e em Santos. Passado pouco
mais de um mês do início da operação, o total de pessoas mortas pela polícia
havia chegado a 24.
O Ministério
Público do Estado de SãoPaulo (MP-SP) concluiu a análise das imagens das câmeras
corporais usadas pelos policiais militares durante a operação no litoral
paulista. Segundo os promotores, todas as mortes foram de suspeitos que
entraram em confronto com os policiais.
Eles tiveram
acesso a mais de 50 horas de gravação. Em três ocorrências, houve confrontos
com criminosos. Em duas ocorrências, as gravações não captaram os momentos das
supostas trocas de tiros, mas, segundo o MP, são importantes porque revelam falhas
operacionais.
Desde o início,
moradores de favelas e de bairros pobres da região falam em abuso no uso da força
pela polícia, invasão de casas, perseguição e mortes que poderiam ter sido
evitadas.
A Ouvidoria do
Estado de São Paulo, uma instituição que faz parte da Secretaria de Segurança
Pública, diz que já encaminhou às polícias 18 procedimentos baseados em relatos
de excessos e de mortes injustificadas que teriam sido cometidas por policiais
na Operação Escudo. A PM e a secretaria negam irregularidades.
José Vicente da
Silva Filho, coronel reformado da PM paulista, ex-secretário nacional de Segurança
e atualmente membro do Conselho da Escola de Segurança Multidimensional da
Universidade de São Paulo, é um dos que argumentam que ações de troca de tiros
que levam a mortes em favelas provocadas por policiais têm pouca ou nenhuma
relevância para o combate à estrutura ilícita associada ao narcotráfico internacional
na Baixada Santista.
“Quanto menos
trabalho de inteligência, mais operações de confronto armado são feitas”, diz. Ele
nota que, pela lógica do crime, aqueles que optam pelo confronto com policiais
na região tendem a ser membros de escalões inferiores e são facilmente substituíveis.
“Lideranças pequenas e intermediárias são todas descartáveis para as organizações
criminosas”, diz ele.
Além de trabalho
de inteligência, o especialista argumenta que robustecer a cooperação entre órgãos
e a troca de informações é outra necessidade premente.
César Barreira,
fundador do Laboratório de Estudos da Violência da Universidade Federal do
Ceará e professor titular aposentado da instituição, lembra que a operação da
Baixada Santista lembra outras, ocorridas no Rio de Janeiro, Bahia e Ceará. Em
comum, diz ele, começam imediatamente após a morte de um policial em serviço e acabam
com uma longa lista de mortos na região onde o agente foi atingido.
“São ações que às
vezes parecem vingança”, diz ele.“O dado preocupante é que fica claro que
confrontos desse tipo aumentam após um policial ser morto, mas eles não têm
efetividade contra a estrutura criminosa em nenhuma região.”
Não se trata de
defender que a polícia deva abdicar do uso da força e de operações especiais em
alguns momentos, afirma ele. Mas que a polícia haja sempre nas duas frentes.
“As polícias militares e civis têm um trabalho de inteligência que é muito mais
efetivo do que o confronto. No entanto, em muitas situações parece que o
confronto é mais usado e os ganhos têm sido pequenos.”
No que pareceu um
contraste em termos de efetividade, agentes da Polícia Federal deflagraram na quarta-feira uma operação de busca e apreensão em Santos e na vizinha Praia Grande, em endereços ligados a integrantes de organização criminosa que usava o
Porto de Santos para despachar cocaína para o exterior.
Além das buscas,
a PF foi atrás do dinheiro auferido pelo grupo. Arrestou 12 imóveis de luxo e bloqueou
contas bancárias associadas aos criminosos, num montante aproximado de R$2,8bilhões.Essa
organização, de acordo com a PF, é acusada de já ter enviado clandestinamente
em navios cargueiros saídos do porto nada menos que 17 toneladas de cocaína.
Operações desse tipo, dizem especialistas, tendem a ter mais efeito na cadeia
do tráfico do que os confrontos armados com criminosos de baixa patente.
O fluxo de cocaína
pelo Porto de Santos acabou criando um diversificada oferta de prestação de
serviços de criminosos locais.
“Aqui na Baixada
agente costuma dizer que o negócio da droga usa um modelo parecido com o das
revendedoras que vão de porta em porta oferecer seus produtos. Alguém que
trabalha em um dos terminais portuários vislumbra alguma possibilidade de colocar
droga nos carregamentos e vende essa ideia para o crime”, disse à reportagem um
servidor que atua há anos no combate ao tráfico no porto.
Dois servidores
públicos que estão no dia a dia do combate aos crimes no porto dizem que a facção
paulista coopta trabalhadores que atuam nos terminais e com os quais levantam
detalhes sobre horários, cargas, navios.
O porto conta com
16 scanners sob os quais passam todos os contêineres com cargas com destino à
Europa e ao norte da África. Milhares de câmeras pelos terminais ajudam na
vigilância.
Isso dificultou a
atuação criminosa, mas não conseguiu impedi-la totalmente. Além de continuar
usando contêineres, recentemente o tráfico passou a recrutar um serviço mais sofisticado:
mergulhadores profissionais que se encarregam de esconder em compartimentos nos
cascos dos cargueiros pacotes à prova d’água contendo cocaína.
Na semana passada,
247 kg da droga foram encontrados por funcionários da Receita Federal e mergulhadores da Marinha em um navio que iria para o Marrocos.
O controle de
territórios também é crucial para a logística ilegal da cocaína por meio do maior
porto: como os carregamentos de cocaína que chegam à Baixada Santista não são
embarcados imediatamente, precisam ficar estocados por um ou mais dias. Casas
vazias, galpões, terrenos em comunidades controlados pelo crime fazem as vezes
de entrepostos apelidados de “chão” ou de “mocó”.
A facção
criminosa que é vista pelas autoridades como a mais influente no narcotráfico
internacional que passa pelo país tem no Porto de Santos uma de suas principais
estruturas de envio de cocaína para o exterior, segundo o Ministério Público do
Estado.
Mas a demanda
firme dos europeus pela droga abriu também portas para que criminosos locais
também passassem a explorar o mercado externo.
O peso da cadeia
internacional da cocaína em Santos, Guarujá e região coloca nas mãos de criminosos
locais armas mais pesadas, como fuzis e submetralhadoras.
Coloca também
mais dinheiro e mais poder. E alimenta uma demanda sempre renovada por lavagem
de dinheiro.
“Traficantes
lavam dinheiro aqui comprando imóveis, lojas, revenda de automóveis, restaurantes,
farmácias. Até em shopping já entraram”, disse uma servidora que também trabalha
no encalço dos narcos da Baixada.
É esse
ecossistema ilícito armado em torno do comércio internacional e também local da
cocaína que a operação mantida pelo governador Tarcísio tenta atacar e cuja
efetividade é questionada.
A segurança na
região e no porto em si é feita, em alçadas distintas, pela Polícia Federal, pela
Receita Federal, pela Polícia Civil e pela Polícia Militar.
O coronel Freitas
afirma que os 30 dias de investida policial tem “tirado energia” das
ramificações do sistema criminoso na região. E que está produzindo também uma redução
de roubos e homicídios.
Até o dia 30,
segundo a Secretaria de Segurança do Estado, 728 pessoas, das quais 280 eram
procuradas pela Justiça, foram presas na operação; e 93 armas 929,3 kg de drogas
apreendidas.
“Quando a operação
acabar, nós não vamos embora deixando exatamente do mesmo jeito que era”, afirma
o coronel Freitas. Ele fala em investimento no 21o Batalhão da PM que cobre o
Guarujá, em uma nova sede da polícia também na cidade, em transformar a base
comunitária na conturbada Vila Zilda na melhor base da PM e em criar um sistema
de monitoramento por câmeras.
Além de incrementos
desse tipo, João Henrique Martins, coordenador do Centro Integrado de Comando e
Controle da Secretaria de Segurança Pública fala da necessidade de mudanças na
legislação de modo a impedir que criminosos perigoso com alto poder financeiro
gozem de progressão de pena.
Veterana na
política em Santos, a ex-prefeita Telma de Souza, uma das fundadoras do PT, tem
sido uma crítica ao que entende ser abusos da PM na Operação Escudo. Ela não
descarta a ideia da necessidade de reforço na segurança, mas relembra o argumento
que pauta uma abordagem de viés mais social. “A falta de políticas públicas
acaba fazendo com que haja uma franja enorme da população que fica à deriva e, muitas
vezes, vai para aonde pode sobrevive", diz ela. “Onde a pobreza é mais
acintosa é onde mais existe apelo do tráfico.”
Fonte: Valor Econômico– por Marcos de Moura e Souza / - Colaborou Adriana Aguiar
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