Setenta
e três contêineres partiram de três portos da costa leste dos EUA com destino ao Porto de Santos
No dia 26 de
julho de 2021, às 15h30, uma mensagem chegou ao sistema de comunicação interna
da sede do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais
Renováveis), em São Paulo. "Algumas fábricas de papel estão importando
resíduos de papel proveniente da coleta seletiva de origem residencial",
dizia a mensagem. "Essa importação é proibida."
A mensagem se
referia a uma série de remessas destinadas à Jaepel Papéis e Embalagens,
produtora de embalagens do estado de Goiás, e incluía fotos de papelão moldado
misturado com máscaras e luvas usadas e diversos utensílios domésticos - uma
garrafa plástica meio cheia de líquido, uma lata vazia de Monster Energy Drink
e um rodo verde, entre outros. Em uma foto, o rosto sorridente de Mike Lindell,
um proeminente defensor do ex-presidente americano Donald Trump e teórico da
conspiração nos Estados Unidos, foi impresso em um pacote que já abrigou dois
travesseiros.
"A julgar
pelo quadro, o lixo parece ter vindo dos EUA", concluiu a nota. A empresa
Jaepel Papéis foi multada em R$ 44.
A partir de
agosto de 2021, as autoridades do Porto de Santos apreenderam ao menos 93
contêineres que transportavam papéis usados destinados à reciclagem misturados
a resíduos domésticos. Embora a empresa importadora negue qualquer
irregularidade, as regulamentações nacionais e internacionais impõem controles
rigorosos sobre as movimentações transfronteiriças desses materiais, e as
autoridades brasileiras estão investigando o caso como tráfico ilegal de
resíduos perigosos.
Durante a
pandemia da covid-19, os embarques de resíduos de papel usado para o Brasil
dispararam como efeito combinado do aumento da demanda por produtos embalados e
da interrupção da coleta de recicláveis das famílias.
O achado no Brasil
Setenta e três
contêineres partiram de três portos da costa leste dos EUA. Depois de deixarem
as cidades de Boston, Charleston e Baltimore, alguns pararam no Panamá ou na
Jamaica antes de chegar ao destino final, em Santos, cerca de um mês depois.
Outros 10 contêineres saíram do porto de Cortes em Honduras e 10 do Porto de
Caucedo na República Dominicana, todos chegando ao Brasil via Cartagena,
Colômbia.
Uma vez no
Brasil, os contêineres foram abertos para inspeção. No interior, agentes do
Ibama e da Receita Federal encontraram diversos tipos de plásticos e materiais
potencialmente perigosos - como pratos descartáveis, latas de energéticos,
roupas usadas, cabos de carregamento, fraldas geriátricas, luvas usadas e
máscaras de proteção - misturados ao papelão, conforme o Ibama descreveu em
relatório. As máscaras e luvas despertaram preocupação entre algumas
autoridades, por representarem risco de disseminação de variantes da covid-19.
Esses achados
alarmaram especialmente Ana Angélica Alabarce, diretora-chefe do Ibama em
Santos. "Não há como essa coisa entrar no nosso país", disse ela
durante uma transmissão ao vivo para o canal do YouTube Porto360. A apreensão
da carga havia sido noticiada em veículos como G1, R7 e Agora São Paulo.
"Isso não
pertence ao nosso país. De jeito nenhum", acrescentou Alabarce.
Os contêineres
foram declarados sob o código alfandegário utilizado para resíduos de papel
reciclável e papelão, que não necessita de autorização prévia para embarque. No
entanto, o Ibama questionou a categorização desse material porque não são
permitidos resíduos de residências norte-americanas nos embarques de papelão
reciclável, caixas e papéis. A agência afirmou que, em vez disso, o material
deveria ter sido classificado como "resíduo sólido urbano".
As diretrizes da
indústria permitem uma presença limitada de contaminantes, que podem ser até 3%
de impurezas - qualquer coisa que não seja reciclável - e 1% de materiais
proibitivos, incluindo qualquer material que possa inutilizar o fardo de papel.
A empresa importadora afirma que esses limites foram respeitados, mas, segundo
o Ibama, eles não devem se aplicar aos recicláveis importados.
O órgão considera
suficiente a presença de materiais contaminantes para categorizá-lo como
resíduo doméstico, que a legislação denomina como "Outros Resíduos",
cuja importação é proibida. Isso levou o Ibama a investigar o caso como
"tráfico ilegal de resíduos perigosos e outros resíduos", segundo
escreveu a assessoria da agência por e-mail.
"No caso do Brasil, a situação é
extremamente preocupante porque a chegada de resíduos mistos, mesmo com
resíduos hospitalares que devem ter uma gestão totalmente diferente dos
resíduos urbanos, significa um risco ainda maior", Neil Tangri, diretor de
ciência e política da ONG GAIA (Aliança Global para Alternativas de
Incineração).
Uma equipe da
Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) foi acionada pelo Ibama para
participar do ato de apreensão dos contêineres em Santos. Em resposta a um
pedido feito pela LAI (Lei de Acesso à Informação) pela reportagem, a Anvisa
divulgou o termo de inspeção que menciona 150 toneladas de fardos "de
papelão contaminado com luvas de procedimento, embalagens vazias de
medicamentos, plásticos, ou seja, não realizaram a correta segregação de
resíduos".
Nas páginas 18 e
19, a Anvisa confirmou que "alguns fardos continham resíduos plásticos,
luvas cirúrgicas, embalagens (blister) de medicamentos juntamente com a bula,
panos de limpeza usados e embalagens de alimentos incluindo latas de alumínio,
misturados nos pacotes". Fontes do Ibama informaram ao UOL e à Columbia
Journalism Investigations que a descoberta de lixo em contêineres levou a
Receita Federal a emitir um aviso nacional a todos os seus postos nos portos
brasileiros, a fim de localizar outros contêineres com material semelhante.
A Jaepel foi
multada em R$ 44 milhões, que é a maior multa imposta pelo Ibama por esse tipo
de infração desde 2010, segundo dados do órgão.
A multa ainda não
foi paga porque a Jaepel tem direito a uma "conciliação", instrumento
criado no Ibama no primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (2019) como uma
espécie de negociação antes do pagamento da multa.
O Ibama aguarda
uma decisão judicial a respeito de uma perícia realizada nos fardos para então
agendar o início da "conciliação", como disse o órgão por e-mail.
Jaepel se recusa a responder
A sede da Jaepel
está localizada no distrito industrial do município de Senador Canedo (GO), a
208 km de Brasília. Procurada para falar sobre o assunto em dezembro de 2021, a
empresa se recusou a receber os jornalistas do UOL.
Por e-mail de sua
assessoria de imprensa, a empresa informou: "Obrigado por entrar em
contato conosco. Lamentamos que não possamos ajudá-lo com sua investigação. Não
temos informações sobre sua demanda".
Em uma segunda
viagem a Senador Canedo, em 17 de dezembro, os jornalistas puderam conversar
brevemente, na frente da Jaepel, com um dos principais diretores da empresa,
Marco Aurélio Cardoso, gerente de Pessoas e Gestão. Questionado sobre a
apreensão de lixo entre os papéis importados, a princípio Cardoso disse que não
sabia do assunto.
Os jornalistas insistiram,
indagando a razão da existência de lixo entre os jornais importados. "Eu
gostaria de falar com você mais tarde. Não tem lixo", disse Cardoso.
Quando informado sobre a existência de fotografias e vídeos mostrando a
presença de lixo, Cardoso subiu o vidro da janela do carro e partiu.
Cardoso disse que
entraria em contato com o UOL para marcar uma entrevista, mas isso nunca aconteceu
desde 17 de dezembro.
Os advogados da
Jaepel em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro não deram retorno aos nossos
pedidos de comentário.
O representante
da empresa responsável pelo recebimento, armazenamento e transporte do material
importado pela Jaepel no Porto de Santos, Gilberto José dos Santos, da empresa
G&D, fornecedor da Jaepel, disse que não poderia comentar o assunto sem
autorização da sua cliente.
"É que nós
somos prestadores de serviços e nós temos regras aqui e espero que o senhor nos
compreenda. Não é má vontade, até porque a gente não tem nada para
esconder", disse Santos.
Os exportadores
De acordo com relatório
interno do Ibama, dois funcionários da empresa responsável pelo recebimento da
carga no porto, a G&D, informaram aos fiscais do Ibama que, quando os
contêineres foram abertos, "os primeiros fardos posicionados na frente
eram diferentes", mas logo depois que "os fardos começaram a ser
removidos, pareciam resíduos prensados junto com sobras de papelão usado e
descartado".
Funcionários da
agência descreveram os materiais no relatório como "tendo características
que permitem inferir que a importação ocorreu intencionalmente, pois o
importador vem recebendo repetidas remessas desde o início do ano”.
Desde janeiro de
2021, a Jaepel importou mais de 250 contêineres de resíduos de papel. A maioria
veio do mesmo exportador nos EUA e passou sem inspeção das autoridades
brasileiras.
Os contêineres
dos EUA foram exportados pela CellMark Inc., uma comerciante internacional de
papel. A empresa não respondeu aos pedidos de comentário da Columbia, apesar de
inúmeras tentativas por telefone, mensagens de texto, e-mails e cartas. Em seu
código de conduta, a empresa afirma que "cumprimos todas as normas
ambientais nas jurisdições em que atuamos".
A Columbia
Journalism Investigations visitou o escritório da Cellmark nos EUA em
Connecticut em 16 de novembro do ano passado, onde trabalha Jimmy Derrico,
diretor executivo e presidente da divisão de reciclagem da CellMark. Ele se
recusou a comentar, assim como outros funcionários. Conversamos com Derrico em
um restaurante próximo após o horário de trabalho, onde ele nos disse que o
litígio estava se aproximando e, portanto, ele não queria responder perguntas
sobre as remessas. Derrico não detalhou a natureza ou origem do processo.
Os outros
contêineres vindos de Honduras e da República Dominicana foram enviados por uma
empresa suíça de papel recuperado, a Vipa Lausanne.
Um representante
da Vipa pesquisou os contêineres apreendidos e afirmou que eles cumprem tanto
as normas comerciais quanto as do setor. "Mais especificamente, o nível de
contaminação foi de 0,3%, bem abaixo dos limites prescritos pelas
regulamentações internacionais e brasileiras", escreveu um porta-voz da
empresa em um e-mail.
"Como é o
caso de todas as nossas transações, em Santos selecionamos estritamente
instalações de reciclagem confiáveis como fontes, e o material enviado das
instalações de reciclagem passou por nossos rigorosos controles", disse o
porta-voz à reportagem.
Desregulamentação
nos EUA
Embora os EUA
sejam um grande produtor e exportador de resíduos, a indústria é, em grande
parte, desregulamentada.
Ao contrário do
Brasil, os EUA são um dos poucos países no mundo que não ratificaram a
Convenção de Basileia, um acordo internacional que visa impedir que o comércio
de materiais nocivos polua o meio ambiente. A Convenção de Basileia inclui o
lixo doméstico entre a categoria "outros resíduos", que exige o
consentimento prévio das autoridades do país importador antes de exportar. Parte
dos resíduos encontrados pelo Ibama era domésticos, como mostra a documentação
do caso.
"Os EUA não
toleram a exportação ilegal de resíduos para o Brasil", escreveu por
e-mail enviado à reportagem um porta-voz da Agência de Proteção Ambiental
(EPA). No entanto, "não há requisitos federais de exportação ou importação
dos EUA sob as regulamentações da Lei de Conservação e Recuperação de Recursos
(RCRA) para o envio transfronteiriço de resíduos médicos ou resíduos
infecciosos do tipo recentemente apreendidos em Santos, Brasil".
O ativista
ambiental Jim Puckett criticou a não-adesão dos EUA à Convenção de Basileia
como "completamente inaceitável e imoral". Puckett é o diretor
executivo e fundador da Basel Action Network, uma organização sem fins
lucrativos que advoga contra o comércio global de resíduos nocivos.
"Se não
fazemos [EUA] parte disso, então as pessoas podem exportar neste país
impunemente", disse Puckett.
Como demonstra o
caso do Brasil, a não adesão dos EUA à Convenção de Basileia significa que os
governos da América Latina têm a difícil tarefa de detectar e impedir a
importação de resíduos mistos, especialmente quando o material é
"disfarçado de materiais recicláveis, como papel", afirma Neil
Tangri, diretor de ciência e política da GAIA.
"Não há
justificativa para um país altamente gerador de resíduos, em vez de se
encarregar de seu problema, transferi-lo para outros territórios",
escreveu Tangri. "No caso do Brasil, a situação é extremamente preocupante
porque a chegada de resíduos mistos, mesmo com resíduos hospitalares que devem
ter uma gestão totalmente diferente dos resíduos urbanos, significa um risco
ainda maior."
Apesar da falta
de regulamentação sobre este material, um porta-voz da Homeland Security
Investigations, órgão do governo dos EUA responsável por investigação de
supostos crimes internacionais, confirmou que o caso foi encaminhado a eles,
mas não podem comentar, pois é uma investigação em andamento.
Os contêineres
enviados de Honduras e da República Dominicana serão devolvidos, disse a
assessoria do Ibama por e-mail. Quanto ao material dos EUA, "não foi
possível negociar a devolução da carga, uma vez que as regras da Convenção não
vinculam os países não signatários". O material será incinerado em uma
instalação licenciada supervisionada por funcionários do Ibama, disse o órgão
por e-mail.
Veja abaixo o vídeo com a reportagem da TV UOL
Fonte: UOL
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