Os supostos policiais corruptos
agiriam nos mesmos moldes do PCC em sua atuação no tráfico internacional
A
sentença que condenou há cerca de dois anos e meio um caminhoneiro por tráfico
internacional de drogas pelo Porto de Santos, o maior do País, por óbvio,
reconheceu provadas a materialidade e a autoria do crime. Porém, a decisão
registrou a sua "estranheza" quanto à atuação dos policiais civis que
prenderam o réu, pois eles não integravam uma unidade especializada na
repressão desse tipo de delito e apreenderam uma quantidade de cocaína bem
aquém da média em diligências do gênero.
Em uma
análise que o fez enxergar para além das provas dos autos, o juízo da 5ª Vara
Federal em Santos vislumbrou indícios de algo errado na conduta de agentes do
Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), da Polícia Civil. O
julgador apontou na sentença a necessidade de o Ministério Público Federal (MPF)
apurar aquela operação em especial, bem como outras envolvendo policiais da
mesma unidade no combate ao tráfico internacional.
O MPF,
ao que se saiba, nada apurou. Porém, a Corregedoria da Polícia Civil, a Polícia
Federal (PF) e o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado
(Gaeco), do Ministério Público Estadual (MPE), investigam agora a suposta
ligação de policiais do Deic no desvio de toneladas de cocaína de criminosos e
no envio de vultosas quantidades da droga à Europa por meio de navios.
Procurado pela Justiça, o traficante André Oliveira Macedo, o André do Rap,
seria vítima do grupo de agentes corruptos.
Sinal de fumaça
Policiais do Deic prenderam em flagrante o caminhoneiro E.Q.P. no dia 12 de fevereiro de 2019. O acusado dirigia um caminhão carregado com café por uma avenida na zona
portuária de Santos (SP) quando houve a abordagem. O veículo e o seu
carregamento foram levados a São Paulo para serem inspecionados. Segundo os
agentes, escondidos no meio da carga lícita a ser exportada, havia 126 kg de
cocaína divididos em tabletes.
O
objetivo era embarcar a carga de café no navio MSC Elodie, com destino ao porto
francês de Le Havre. Depois, a droga seria encaminhada a Portugal. Em suas
alegações finais, o MPF requereu a condenação do réu por tráfico internacional.
Ao colocar em xeque a legalidade da ação do Deic, pelo fato de o contêiner ter
sido aberto e vistoriado na sede daquele departamento, em cidade diversa ao do
local da prisão, a defesa do caminhoneiro pediu a sua absolvição.
O
sistema de rastreamento do caminhão acusou um desvio da rota entre Varginha
(MG) e o terminal portuário santista onde a carga deveria ser deixada. Sem
justificativa, o réu se dirigiu durante o trajeto para o pátio de uma empresa
de transporte e turismo. Nesse local, ao que tudo indica, a cocaína foi introduzida
no contêiner. O juízo da 5ª Vara Federal em Santos condenou o motorista a nove
anos e quatro meses de reclusão, em regime inicial fechado, negando-lhe a
possibilidade de recorrer em liberdade.
Apesar
da decisão condenatória, o magistrado assinalou na sentença algumas
observações. "Causa estranheza agentes lotados em delegacia especializada
no combate a crimes contra o patrimônio realizarem ação voltada ao combate de
tráfico internacional de substâncias entorpecentes [...] Tal fato já foi verificado
em outras ações penais que tiveram trâmite por esta unidade jurisdicional. Em
referidas ações, policiais civis lotados no Deic realizaram apreensões de
cargas de cocaína que estavam acondicionadas em meio a cargas de café
provenientes de Minas Gerais".
Ainda
conforme a decisão, prolatada no dia 17 de julho de 2019, "nos precedentes
citados, assim como se verifica na espécie, foram apreendidos lotes de cocaína
em quantidades muito inferiores às que são usualmente apreendidas pela Receita
Federal e pela Polícia Federal de Santos, ocorrendo o encaminhamento dos
veículos, unidades de carga e motoristas à sede do Deic na Capital, onde foram
realizados os flagrantes".
Sob o
fundamento de que "eventuais vícios verificados na fase pré-processual não
contaminam a ação penal", o juiz rejeitou a tese da defesa, mas registrou
a necessidade de o MPF dar a "devida atenção" às ações do Deic no
combate ao tráfico internacional no Porto de Santos. O advogado do caminheiro
recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3) sustentando que a
ação policial "restou maculada e duvidosa" por não ter sido feita
pela Polícia Federal ou órgão especializado no combate ao narcotráfico.
A 5ª
Turma do TRF-3 reconheceu ser "inusitada" a atuação dos agentes do
Deic, mas ressalvou que ela não tem a aptidão necessária para inviabilizar a
ação penal. Por unanimidade, o colegiado deu parcial provimento à apelação e
reduziu a pena para sete anos, nove meses e dez dias, em regime inicial
semiaberto, por entender que o réu fazia jus à benesse do tráfico privilegiado
(artigo 33, parágrafo 4º, da Lei 11.343/2006), por ser primário e não integrar
organização criminosa. O acórdão é de 11 de julho de 2020 e, em outubro daquele
ano, o motorista progrediu para o regime aberto.
Corrupção sob apuração
Investigação
do Gaeco que tem três policiais do Deic como principais alvos veio à tona
recentemente. Com autorização judicial, perícia feita no celular de um deles
revelou um grupo de WhatsApp denominado "Trampo Antuérpia", no qual
há diálogos que tratam da remessa de cocaína por meio de navio à Europa. O
Porto de Antuérpia, na Bélgica, é um dos principais canais de entrada da droga
naquele continente.
Os
supostos policiais corruptos agiriam nos mesmos moldes do Primeiro Comando da
Capital em sua atuação no tráfico internacional. Eles utilizariam uma carga
lícita a ser exportada para a Europa para ocultar grande quantidade de cocaína.
Nas conversas do aplicativo de mensagem um agente diz que "é preciso
estufar as latas" (encher os contêineres). Segundo a assessoria de
imprensa da Secretaria de Estado do Segurança Pública (SSP), os investigados
foram afastados da função.
A
Polícia Federal apura denúncia de que policiais do Deic descobriram em agosto
de 2021 duas toneladas de cocaína em um depósito em Guarujá, onde fica a margem
esquerda do Porto de Santos. Destinada ao mercado europeu, a droga seria do
traficante André do Rap e nunca apareceu, porque não houve apreensão oficial.
Os agentes corruptos teriam contado com a colaboração de dois informantes,
possíveis membros do próprio PCC, que desapareceram. Suspeita-se que a facção
criminosa os eliminou em retaliação.
Na mira
da Corregedoria da Polícia Civil também está uma operação do Deic desencadeada
em 28 de dezembro do ano passado nas cidades de Barueri, na Região
Metropolitana de São Paulo, e de Praia Grande, na Baixada Santista. Ao todo,
três homens foram presos, sendo apreendidos oficialmente 400 kg de cocaína,
seis fuzis, 135 munições e sete coletes à prova de balas. Dias depois, surgiu
denúncia anônima de que nos locais vistoriados havia mais 1,5 tonelada da
droga.
Balanço
divulgado pela Receita Federal em dezembro do ano passado contabiliza 110,9
toneladas de cocaína apreendidas pelo órgão no complexo portuário santista,
entre 2013 e 2021. As estatísticas mostram uma evolução na quantidade do
entorpecente interceptado, a partir do momento em que escâneres passaram a ser
utilizados nas inspeções dos contêineres e foram aprimorados os métodos de
análise, a partir do tipo da carga exportada, do porto de destino, do navio
empregado no frete e de outros dados.
Fonte:
Texto:Eduardo Velozo Fuccia - Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários publicados não representam a opinião do Portal Segurança Portuária Em Foco. A responsabilidade é do autor da mensagem. Não serão aceitos comentários anônimos. Caso não tenha conta no Google, entre como anônimo mas se identique no final do seu comentário e insira o seu e-mail.