Para
coordenar os trabalhos de repressão, foram contratados oficiais militares da
reserva e policiais na ativa para compor os quadros da Guarda Portuária.
Dirigentes
do Porto de Santos, o maior complexo portuário da América Latina no litoral de
São Paulo, utilizaram a estrutura da companhia para colaborar com o aparelho de
repressão durante a ditadura militar brasileira (1964-1985). O comando do
complexo permitiu a prisão de funcionários dentro do próprio porto, perseguiram
trabalhadores com atuação política e sindical, facilitou a tortura de
servidores, produziu informações e relatórios sobre os trabalhadores, depois
encaminhadas aos órgãos militares. “Eles prendiam a pessoa, batiam nela. Foi
criado um clima de terror, de constrangimento pela polícia portuária. Por causa
disso, o trabalhador acabava se submetendo a tudo que eles mandavam”, explica
Antônio Fernandes Neto, ex-estivador, pesquisador e uma das vítimas que
encabeça uma representação contra Companhia Docas de Santos (CDS), desde os
anos 80 substituída pela estatal Companhia Docas do Estado de São Paulo
(Codesp).
A
ação civil que busca responsabilizar pelas violações de direitos humanos a
empresa portuária e quem a sucedeu começou tramitar em 2018. Ganhou novos
holofotes em 23 de setembro deste ano, quando a montadora Volkswagen, também
acusada de permitir, torturar e prender funcionários dentro de suas
instalações, fechou acordo com o Ministério Público para destinar 36,3 milhões
de reais a ex-trabalhadores vítimas e a ações de memória. No caso da empresa
alemã, foi a primeira vez no Brasil que uma companhia ―uma pessoa jurídica, e
não física― admitiu reparar crimes cometidos durante a ditadura, o que foi
considerado um precedente jurídico para que outras companhias envolvidas com a
repressão sejam investigadas e responsabilizadas.
Depoimentos
como o do ex-funcionário Antônio Fernandes Neto, documentos dos órgãos de
vigilância fabricados com informação fornecida pelo porto, atas de reunião da
diretoria da Companhia Docas de Santos e relatos sobre a perseguição aos funcionários
compõem a representação que chegou à Procuradoria Geral da República, em
Brasília, ainda no Governo Michel Temer ―e depois se transformou em inquérito
civil tocado pelo Ministério Público Federal em Santos. Em agosto de 2020, o
prazo para apuração de responsabilidades, captação de informações e depoimentos
foi prorrogado por mais um ano. O procurador do caso, Ronaldo Ruffo
Bartolomazi, argumenta que o tempo maior é necessário para a realização de
novas diligências.
O
novo prazo final do inquérito é 28 de julho de 2021 e os procuradores devem
começar a ouvir os envolvidos a partir do mês que vem. As entidades de defesa
dos direitos humanos, sindicatos e cidadãos que lideram a representação, no
entanto, se queixam da demora. “Há demora para o MPF agir diante da
representação, protocolada há muito tempo. Ação semelhante, envolvendo a
Volkswagen, tramitou em tempo mais curto, sendo que a denúncia contra a
Companhia Docas possui muitos documentos comprobatórios dos crimes cometidos,
inclusive em papel timbrado da companhia”, explica a advogada Ana Lúcia
Marchiori, uma das signatárias da representação.
Navio-prisão e motivação
econômica
O
papel dos dirigentes do porto e de outros empresários e empresas privadas na
repressão da ditadura é considerado uma das facetas mais importantes, mas menos
difundidas do regime militar, um dos motivos pelos quais alguns historiadores
preferem chamar o período de ditadura civil-militar. A Comissão Nacional da
Verdade, em seu relatório final em dezembro de 2014, identificou a ação
repressiva desencadeada no Porto de Santos também enumerou o papel de mais de
50 companhias, tanto estrangeiras quanto nacionais e de portes variados, que
contribuíram de alguma forma com a concretização e manutenção do golpe de 1964.
Entre elas estão Johnson & Johnson, Esso, Pirelli, Texaco, Pfizer, Souza
Cruz. A montadora Fiat, por sua vez, é alvo de um inquérito do Ministério
Público de Minas Gerais, onde fica sua sede, também por colaboração com os
militares.
Integrantes
dos órgãos de repressão durante o regime justificaram a perseguição aos
trabalhadores no porto santista como “necessária”. Segundo contou o coronel
Erasmo Dias em entrevista ao livro Sombras sobre Santos (1988), a repressão se
deu porque “Santos era onde a revolução corria mais perigo por conta do Fórum
Sindical de Debates”, disse ele, em referência ao forte grupo que intersindical
da cidade.
Para
manter os trabalhadores presos, as forças militares utilizaram até um navio,
chamado Raul Soares, atracado no porto de abril a outubro de 1964. A finalidade
da prisão embarcada era, segundo Erasmo Dias, “prender e humilhar” os
trabalhadores. Documento encontrado no Arquivo Nacional em Brasília também
comprova que a comissão de oficiais da Marinha de Guerra, encarregada do “IPM
[Inquérito Policial Militar] da Orla do Cais”, realizou seus trabalhos dentro
de salas da Divisão de Pessoal da Companhia Docas de Santos na década de 1960.
O trabalho consistia em listar os servidores portuários que, no entender dos
órgãos de repressão, estavam atrelados a partidos de esquerda.
A
CDS também fornecia veículos da empresa para realização de detenções de
servidores e ex-funcionários. O eletricista Ademar dos Santos, integrante do
Sindicato dos Operários Portuários, conta que foi preso em sua casa, levado ao
Departamento Pessoal da empresa num veículo oficial da CDS, conduzido por
funcionário do porto. “Um carro da antiga Companhia Docas de Santos foi à minha
casa. Era um policial civil das Docas [agente da Guarda Portuária]; meu colega,
que jogou bola comigo. Ele disse que eu seria preso. E fui preso mesmo. Tomaram
meu depoimento e eu fui dispensado", contou o eletricista, hoje com 95
anos de idade, em reportagem do Diário do Litoral em 25 de outubro de 2013.
Não
demorou e os agentes reapareceram na casa de Ademar dos Santos, conta ele.
"Me colocaram em um camburão e me levaram por engano para a Fortaleza do
Itaipu, em Praia Grande. No dia seguinte, outra viatura me pegou para me levar
ao quartel dos fuzileiros navais, na Avenida Afonso Pena, em Santos. De lá, uma
outra viatura policial me levou, no dia seguinte, ao navio Raul Soares”, disse
o eletricista. Ademar dos Santos ficou preso em isolamento por 92 dias no
navio-prisão.
“Esse
navio havia servido de prisão já em 1924. Resolveram usar de novo. Mas não
tinha as mínimas condições. Jogaram muito BHC [agrotróxico de alta
periculosidade], inseticidas e raticidas no porão. O mal cheiro era horrível. O
calor infernal”, conta o ex-prisioneiro Darcy Rodrigues que, aos 79 anos, mora
em Bauru, interior de São Paulo. Ele ficou preso por 26 dias no Raul Soares, em
1964. Darcy Rodrigues era sargento do Exército que depois abandonou a carreira
militar para lutar contra a ditadura. Ele era conhecido como “lugar-tenente” de
Carlos Lamarca, com quem integrou a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Foi
torturado e banido do Brasil. Viveu exilado por dez anos em Cuba. "A gente
ficou nesse porão. Serviam o café da manhã e só uma refeição quente por dia,
quase nem dava para comer”, conta sobre o navio.
Dentro
do Porto de Santos, as prisões e perseguições de funcionários eram constantes,
segundo denuncia o ex-estivador Antônio Fernandes Neto. Eles eram levados para
uma sala dentro do Departamento de Vigilância e Informações (DVI) onde
apanhavam e ficavam presos por horas ou dias. "Todos morriam de medo da
Guarda Portuária, que era violenta, formada por ex-militares e militares da
ativa. O clima ficava pior ainda quando falavam que iam chamar, ligar para o 70,
o número do ramal interno da Guarda Portuária”, conta Fernandes Neto.
A
repressão e monitoramento realizados pela CDS possibilitaram prisões em massa
de funcionários, conforme descreve reportagem do jornal A Tribuna, de Santos,
na edição de 7 de maio de 1964, poucas semanas depois do golpe: “Desde o dia 1°
de abril último, até ontem, mais de 250 pessoas foram detidas e muitas delas
recolhidas ao xadrez, principalmente nos primeiros dias que se seguiram à vitória
da revolução democrática”.
A
Companhia Docas também militarizou a Guarda Portuária, subordinando a direção
do setor à Capitania dos Portos, além de efetuar o pagamento de salários dessa
Guarda. Para coordenar os trabalhos de repressão, foram contratados oficiais
militares da reserva e policiais na ativa para compor os quadros da Guarda
Portuária. Militarizada, a atuação dessa força interna de segurança ultrapassou
os limites físicos da companhia no porto e assumiu o monitoramento de
organizações políticas na cidade de Santos.
A
pressão exercida pelos militares e a repressão política e sindical beneficiaram
a companhia, de acordo com a representação que tramita no MPF. Documentos e
dados apontam a retirada de direitos históricos dos trabalhadores, como a
tabela de horas extras, vigente desde 1937. Também houve imposição do regime de
trabalho de dois turnos e real redução salarial. Tal situação foi possível com
a assinatura de lei em 29 de novembro de 1965 que dispunha sobre o novo regime
de trabalho nos portos. O contrato coletivo daquele ano foi defendido por integrantes
da Marinha e dirigentes sindicais nomeados pelo Capitão de Mar e Guerra, Júlio
de Sá Bierrenbach, também delegado do trabalho marítimo. Antes, outro decreto
de 1965 já havia declarado a nulidade dos acordos trabalhistas firmados em 1962
e 1963. A ordem era agir com o máximo rigor. Os trabalhadores foram perseguidos
em suas casas, nas ruas, nos sindicatos, outras cidades e até em outros Estados.
As
denúncias revelam ainda que a CDS teria colaborado com a Operação Condor,
aliança militar entre as forças de repressão da América do Sul, que funcionou
nas décadas de 1970 e 1980, em parceria com a agência de inteligência dos
Estados Unidos, a CIA. O objetivo da operação era interligar as ações militares
entre os países na repressão a opositores.
“Se
uma empresa contribui para que se cometam violações manifestas dos direitos
humanos, a empresa e seus empregados se colocam numa zona jurídica de
responsabilidade", explica a advogada Ana Lucia Marchiori, que assina a
representação denunciando a CDS.
Questionada
pela reportagem, a Codesp, atualmente denominada Autoridade Portuária - Santos
Port Authority (SPA), uma empresa pública fundada em 1980, informou, por meio
de nota, que “desconhece informações a respeito de eventuais atos de repressão
que teriam sido praticados pela Companhia Docas de Santos (CDS), empresa
privada que administrou o Porto de Santos, em regime de concessão, até o ano de
1980”. A empresa pública portuária pode voltar às mãos privadas em breve. É uma
das apostas do plano de privatização do Ministério da Economia de Jair
Bolsonaro até 2022.
Fonte:
El País – Brasil
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