Documentos
inéditos da ditadura militar revelam como a administração do Porto de Santos
monitorou trabalhadores, facilitou a prisão de suspeitos de subversão e se
beneficiou economicamente do golpe de 1964
Numa
reunião regada à pizza e combinada através de códigos dias antes do golpe de
1964, um grupo de dirigentes sindicais de Santos definiu que caberia a cada um
decidir o próprio destino diante do risco iminente de uma ofensiva militar na
cidade. Àquela altura, Ademar dos Santos, do Sindicato dos Operários
Portuários, já pressentia que seria preso. Enquanto alguns optaram por fugir e
até se refugiar em embaixadas, o funcionário da Companhia Docas de Santos
preferiu aguardar a sua hora.
Passou
a conviver com uma tensão crescente no trabalho, aos comentários de colegas de
que o “coro ia comer solto para o seu lado.” Seu superior concluiu que era
melhor conceder-lhe férias, para esperar a “poeira baixar.” Não baixou. O
destino foi selado na sua casa, com a visita de um empregado das Docas,
concessionária que administrava o porto na época. Era o início de um roteiro
que o fez embarcar ao navio-prisão “Raul Soares”, ancorado na região em 1964,
para receber presos políticos da ditadura.
Ao
avistar o jipe da empresa, Ademar reconheceu o colega de serviço com quem já
jogara futebol. Escutou dele que apenas cumpria ordens. Na ocasião, o
“companheiro” informou ter conduzido outros dois funcionários suspeitos no
mesmo dia. O destino era o Departamento Pessoal da companhia, onde seria
interrogado sob acusação de subversão.
A
esperada ordem de prisão só veio no dia seguinte, após um novo depoimento, na
mesma sala. Ao lembrar o episódio hoje, aos 85 anos, Ademar completa o relato
com uma informação obtida anos depois de um funcionário que frequentou o local
das inquirições. Saulo Pires Vianna, então chefe do Departamento Pessoal, teria
sugerido reconvocar Ademar, garantindo que ele tinha mais a dizer. “Acusaram os
sindicatos de estarem infiltrados de comunistas”, afirma o portuário
aposentado. “Diziam que estavam cheio de armas, mas não encontraram um só
estilingue.”
Nau da tortura: o navio-prisão “Raul Soares” chega à cidade de Santos, em 1964, para abrigar presos políticos acusados de subversão
|
Ademarzinho, como era conhecido, passou 92 dias em isolamento no navio-prisão, para onde foram enviados sindicalistas, colegas do porto, além de militares. Na embarcação, ele chegou a dormir no chão do banheiro como castigo e foi saudado com aplausos pelos companheiros de cárcere ao fim do isolamento.
Depois
de 29 dias, Ademar voltou a ser levado ao Departamento Pessoal da Companhia
Docas de Santos, onde ouviu um militar proferir o veredicto com um soco na
mesa: “Não tem jeito, o senhor ama mais o Partido Comunista do que a sua
família”, disse. “Até então estava detido, agora está preso.” No total, foram
cerca de cinco meses de reclusão.
Como
ele, outros sindicalistas enviados ao “Raul Soares” citam os depoimentos no
Departamento Pessoal das Docas. Em reportagens da época, há referências sobre o
uso das instalações da empresa. Os presos do navio relataram pressões
psicológicas, castigos e condições precárias, como ambientes molhados com
percevejos e insetos.
Além
dos depoimentos dos sobreviventes, “ISTO É DINHEIRO” obteve, com exclusividade,
documentos que mostram a relação da administração do Porto de Santos com o
regime militar de 1964 a 1985. As mais de 2.000 páginas serão apresentadas numa
denúncia à Procuradoria Geral da República (PGR).
Não
há documentos que comprovem a influência de Vianna, responsável pelo
departamento pessoal da Companhia Docas, na prisão de Ademar. Mas os registros
apontam a sua proximidade com o regime em outros episódios. Um relatório da
divisão de vigilância do Ministério dos Transportes, de 1973, mostra que Vianna
já atuara para frear um suspeito de subversão na empresa antes mesmo do golpe.
Segundo
o dossiê, em 1962, Edemar Cid Ferreira, que depois viria a fundar o Banco
Santos, liquidado pelo Banco Central em 2004, chegou a ser aprovado num concurso
para escriturário na Companhia Docas de Santos, mas teve a contratação vetada
por Vianna. Ferreira fora identificado numa lista de assinaturas a favor do
registro do Partido Comunista Brasileiro, em 1961.
O
chefe do Departamento Pessoal consta no rol de testemunhas de acusação em
outros processos da ditadura. Em 1967, o Serviço Nacional de Informações (SNI)
o identifica como fonte da denúncia contra o advogado Ildélio Martins, que
prestara serviços aos portuários e chegou a ser presidente da Ordem dos Advogados
do Brasil (OAB-SP). No relatório, o funcionário do porto é designado a apurar
as acusações em conjunto com os militares.
O
levantamento foi feito por trabalhadores e historiadores em arquivos públicos.
“A nossa tese é de que a Companhia das Docas de Santos e a Codesp cometeram
crime de responsabilidade”, afirma Adriana Gomes Santos, professora da
Universidade Federal de Roraima. “Queremos que a PGR investigue se houve crime
e tome as medidas para reparar os danos coletivos.”
Ademar dos Santos, portuário aposentado preso em 1964: “Diziam que os sindicatos estavam cheio de armas, mas não acharam um só estilingue” (Crédito:Divulgação) |
Até
1980, a administração do porto estava à cargo da Companhia Docas de Santos,
empresa privada que obteve a concessão por 90 anos. Em seguida, passou ao
governo federal, pela Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp).
Procurada, a estatal afirmou que não se manifestará sobre os casos da ditadura
neste momento, por “não ter informações precisas sobre o assunto.” A denúncia
será a segunda do gênero contra uma empresa no País. Um inquérito contra a
Volkswagen apura os vínculos do grupo com o regime militar. A montadora admitiu,
no fim de 2017, sua responsabilidade em casos de prisão e monitoramentos no
período.
Cidade Vermelha
Em
nenhuma outra cidade, a ofensiva contra os representantes dos trabalhadores na
época da ditadura se deu de maneira tão rápida. Nos primeiros dias de abril de
1964, Santos foi tomada por centenas de representantes das Forças Armadas e
policiais, que invadiram sindicatos e prenderam seus integrantes.
As
entidades, organizadas no Fórum Sindical de Debates (FSD), vinham colecionando
conquistas importantes com as greves deflagradas nos anos anteriores ao golpe
de 1964. Numa delas, 102 embarcações ficaram paradas em dois dias.
Na
época, um coronel do Exército considerou que as lideranças políticas santistas
estavam tomadas por comunistas. “Tínhamos um entendimento de que a classe
trabalhadora estava avançando”, afirma Nelson Amado, então dirigente do
Sindicato da Administração Portuária. Os benefícios da categoria incluíam, por
exemplo, adicionais de hora extra de até 290%. “Nunca imaginávamos que os
militares iam dar um golpe.” Amado foi preso na casa de um tio e enviado ao
“Raul Soares”.
Sindicatos rendidos: Forças Armadas tomaram Santos logo após
o golpe de 1964 e prenderam a maior parte dos dirigentes locais
(Crédito:Divulgação)
Em
documento de 1965, a Companhia Docas de Santos exalta os benefícios econômicos
obtidos após o golpe, em consequência da revogação de direitos conquistados em
anos anteriores. Segundo a ata da diretoria aos acionistas, a supressão dos
adicionais gerou uma redução global de custos de 33% aos usuários do porto. “Ao
cobrar a demora para aprovação de uma expansão, a diretoria cita os esforços do
governo na época.
“Mais
flagrantes se tornam essas deficiências se considerarmos as enérgicas
providências tomadas pelo governo no sentido de racionalizar o regime de
trabalho nos portos, aumentando sua eficiência”, afirma o documento. A tese da
vantagem econômica do golpe militar também fora sustentada no relatório sobre a
relação da Volkswagen com os militares brasileiros, ao atestar que o controle
dos sindicatos permitiu ao grupo praticar salários “bem mais baixos” do que
numa democracia pluralista.
No
fim de 1964, todos os portuários que foram presos no navio “Raul Soares” haviam
sido soltos. Eles foram demitidos e enfrentaram dificuldades de se recolocar. A
vida dos que ficaram não necessariamente seguiu tranquila.
Guarda Portuária
A
Guarda Portuária, formadas por funcionários da administração do porto, passaram
a responder à Capitania dos Portos e a incorporar militares. Há relatos de
abusos cometidos na década de 1970 em inquéritos internos, com denúncias de
violência, como um trabalhador queimado por um cigarro. Integrantes da
vigilância interna também foram acusados de repassar às autoridades dossiês
falsos contra um promotor e até um delegado do Departamento de Ordem Política e
Social (Dops) por supostas práticas subversivas.
A
mudança de administração, em 1980, não significou o fim da relação próxima com
os militares. Há ao menos seis documentos que mostram como a Codesp seguiu
fornecendo dados ao regime. Um deles, de 1980, revela a presença de guardas
portuários no lançamento do PT em Santos, ao lado de agentes Dops, fora da
empresa. Eles foram descobertos enquanto gravavam o discurso do então
sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva.
Panfletos
do partido são encontrados em papéis com timbre da Codesp nos arquivos da
ditadura. Os funcionários da estatal ainda elaboraram e repassaram a setores de
vigilância um dossiê sobre as atividades da Convergência Socialista, assim como
identificaram, por meio de um informante, a presença de uma argentina numa
reunião do PT. A Procuradoria deve apurar agora se há outros casos semelhantes.
Sob vigia
Documentos
encontrados em arquivos públicos mostram monitoramento e investigação dentro e
fora do Porto de Santos.
Fonte: Isto É Dinheiro
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