A
ação da Polícia Marítima nas páginas da revista O Cruzeiro, em 1951
Santos,
janeiro de 1951. O mundo estava mergulhado na tensão da Guerra Fria entre os
Estados Unidos e a União Soviética (ou entre o sistema capitalista e o
comunista). O Brasil, situado na zona de influência norte-americana, vivia os
últimos dias sob o comando do presidente militar Eurico Gaspar Dutra (eleito em
1945), cujo governo imprimiu intensa vigilância contra a “onda vermelha”. O
globo experimentava um tempo de razoável instabilidade geopolítica e tal clima
encontrava campo fértil na maior cidade portuária do país, notadamente tida
como “explosiva” do ponto de vista ideológico-político. Para conter os ânimos
na cidade de Santos, então, o governo mantinha uma força policial altamente
repressiva, dura, a temida “Polícia Marítima”, criada originalmente em outubro
de 1892 e repaginada no pós-guerra como “Polícia Marítima e Aérea”.
Sua
função inicial era basicamente a repressão ao contrabando mas, com o passar do
tempo, e a ação politico-social de seus comandantes, o efetivo acabou atuando
em outras frentes, como na caça aos comunistas (muitos comícios foram debelados
na base da força pelos integrantes da tropa de choque da Polícia Marítima), na
investigação de crimes, em ações contra marinheiros desertores, na vigilância
de pontos estratégicos do porto, no combate ao tráfico de drogas e até nos assuntos
corriqueiros da cidade (por conta disso, chegou a entrar em conflito contra
outras forças policiais, como a Guarda Civil Pública).
Entre
os vários comandantes da Guarda Marítima, o mais conhecido e temido foi José
Joaquim da Cruz Sêco, que a dirigiu de 1940 a 1954, quando deixou o posto para
ocupar o cargo de deputado estadual pelo PL (Partido Libertador). Sob sua
liderança, a Polícia Marítima ganhou fama nacional pela forma agressiva de agir
e desmantelar tentativas de contrabando, tráfico de drogas e disseminação de
ideais comunistas. Os “rapazes do dr. Secco”, como eram chamados os policiais
marítimos acabaram sendo tema de uma extensa reportagem da Revista O Cruzeiro,
em sua edição de 13 de janeiro de 1951. Sob o título “Santos, Porto de Guerra”,
a matéria, escrita pelo jornalista David Nasser, com fotos de Jean Manzon,
descreveu a rotina de trabalho da Polícia Marítima e Aérea de Santos,
traduzindo, um pouco, o que era o grupo policial mais temido e polêmico da
cidade.
O
Memória Santista reproduz, na íntegra, a reportagem de O Cruzeiro.
SANTOS,
PORTO DE GUERRA
300
homens enfrentam, na capital do café, os ladrões, os contrabandistas e os
vermelhos – Poderosamente armados, dissolvem comícios e protegem as ilhas de
explosivos – A bomba-relógio contra Dutra explodiu 12 horas depois – Cocaína
para os grã-finos de São Paulo – “Somos os sentinelas dos mares do sul”
Texto
de David Nasser Fotos de Jean Manzon
Desertores na cadeia pública de Santos |
Certa
vez, quando os ponteiros se uniram na metade do dia, o general Eurico Gaspar
Dutra subiu uma escada, no Porto de Santos. Presidiu a cerimônia e partiu, na doce
paz do Senhor. Doze horas depois, quando novamente os ponteiros se uniram à
meia-noite, explodia a bomba relógio. O sabotador errar nos cálculos e a vida
do Presidente da República se salvara por um lapso. Não era mais do que um
episódio isolado na grande luta internacional. Sim, porque a guerra chegara ao
Porto de Santos. O maior reduto comunista da América do Sul (cerca de 80%),
teve esfaceladas as suas principais células e submetidos os líderes das
sabotagens ou da resistência organizada a uma severa vigilância. O Porto, que
era um baluarte vermelho, já não serve de local às reuniões dos últimos
fanáticos. O número de prisões diminuiu e os perigos também. Com o despontar da
terceira guerra mundial, entretanto, os navios que entram e saem do maior porto
do Brasil, vindos das zonas semiconflagradas “passam pela peneira do Dr. Sêco”,
segundo a voz corrente em Santos. Vejamos de que se trata.
O
Dr. J.J. Cruz Sêco pertence à tradicional família dos Sêco e é irmão do
brigadeiro Vasco Alves Sêco. De poucas palavras, muito calmo, com um riso manso
que um repórter de São Paulo descreveu como riso de aço, o Dr. Sêco comanda
trezentos rapazes extraordinariamente bem treinados para as missões perigosas.
São os guardas marítimos e aéreos que varreram os ladrões e contrabandistas do
Porto de Santos e enfrentaram os comunistas nas ruas. No instante em que ação
do Dr. Sêco principiou a se fazer sentir, a situação pode ser descrita melhor
por um morador de Santos, o Sr. Silvio Costa e Silva.
“Era
temeridade demorar-se alguém nas imediações portuárias. Surgia, rápido, o
meliante. Inúmeras pessoas, várias vezes, foram atacadas por trás e pela
frente, estabelecendo-se um clima de absoluto
desassossego e perigo para a chamada zona do cais. Essa época,
felizmente, já passou. Ação extraordinariamente repressiva da Polícia Marítima
foi, pouco a pouco, detefonizando os mais recônditos interstícios de toda a
faixa portuária paulista, de tal maneira que hoje, quando falamos em Polícia
Marítima, associamos rapidamente à ideia de uma verdadeira “blitz”, constituída
por alguns homens intrépidos e abnegados que outros não são senão os
componentes daquela milícia. À frente desses rapazes devotados e cheios de
boa-vontade, está o Dr. Joaquim José da Cruz Sêco, figura impoluta de policial,
com uma folha de serviços já prestados que correspondem ao máximo de
fidelidade, correção e intransigência na manutenção da ordem”
Santos,
porto mundialmente conhecido, era o terror das companhias de seguro. Somente
aceitavam o risco das mercadorias despachadas para essa porta do Brasil com
sobretaxas especiais mediante cláusulas especialíssimas. O cais, em toda sua
extensão, permanecia entregue aos larápios e assaltantes. Os oficiais das
unidades militares não saiam sem escolta e a ordem a bordo dos navios que
aportavam em Santos era: caminhar em grupo.
Trezentos
homens, poderosamente armados com submetralhadoras, pistolas 45 (tipo G-man),
fuzis, cassetetes e outras armas, além de tremendos músculos, diariamente
exercitados no ginásio da corporação, caíram sobre os meliantes como uma nuvem
vinda do céu e foi um espetáculo inesquecível. A caça aos ladrões prosseguiu,
sem trégua, durante meses a fio. Nos navios, no cais, nos esconderijos, os
larápios eram descobertos, aprendidas as mercadorias e submetidos a processos.
Os portuários, honestos e leais
trabalhadores , assistiam pasmados aquele combate. Cumpre notar que entre os
estivadores e demais servidores do Porto de Santos nunca se encontrou um,
sequer, que compactuasse com os ladroes. Isto serviu, também, disse-nos um dos
líderes sindicais, “para salvaguarda do bom nome dos portuários de Santos,
provada que foi a nossa absoluta não participação no desvio de
mercadorias. Cumpre notar que é uma
tradição do grande porto brasileiro a honestidade dos trabalhadores do mar e
das docas e de toda a faixa portuária”.
O
comandante Joaquim José Secco (à frente) conduz seus homens nas proximidades de
uma ilha e, num local raso, entram no mar com os fuzis acima das cabeças.
A
ilha dos ladrões
Comandante
Joaquim José Secco (à frente) conduz seus homens nas proximidades de uma ilha
e, num local raso, entram no mar com os fuzis acima das cabeças.
Duas
da madrugada. Havia lua e se avistava o contorno da ilha. Na praia, tudo
apagado. Silenciosamente, os rapazes do
Dr. Sêco descalçavam os sapatos. O próprio Dr. Sêco dava o exemplo. Perto da ilha, num local raso, entraram no
mar e com os fuzis acima das cabeças, aproximaram-se da ilha.
-Saltem!
Foi
a ordem do comandante para os repórteres.
E lá fomos nós, com água acima do peito.
-Menos
barulho!
Era
Manzon que ensaiava natação. Em voz baixa, o tenente Mário de Vicenzi Júnior
preveniu:
-O
caso não é para brincadeira.
-Ora,
respondeu Manzon, isto parece um piquenique.
Mal
as últimas sílabas haviam saído, uma bala riscou a noite e foi levantar um
pouco d’água, a dois metros.
-Que
é isso?
Tenente
Mário abanou os ombros
-Piquenique!
O
Dr. Sêco aconselhou
-Já
nos avistaram. Convém andar depressa. Nenhum outro tiro antes de chegarmos à
praia.
Foi
então que uma fuzilaria dos diabos começou, vindo os projéteis de uma pequena
mata. A caça durou até às duas da madrugada, quando três homens saíram. Os
guardas marítimos e aéreos do Dr. Sêco haviam fechado o cerco e a munição dos
três se acabara.
-Ladrões
ou contrabandistas?
-Vamos
ver!
Foi
a resposta do comandante. Armou-se uma fogueira na praia para secar os
uniformes, e os três homens foram trazidos à presença do chefe da tropa. Após
ligeira resistência ao interrogatório, despejaram a sua história. Haviam
desertado de um cargueiro sul-africano e pretendiam fixar-se no Brasil. Um
companheiro de bordo lhes informara que naquela ilha, perdida no litoral de São
Paulo, estariam a salvo durante algum tempo. Na primeira oportunidade, um barco
qualquer, de contrabandistas ou ladrões, poderiam conduzi-los a um porto
seguro.
-Onde
estão as suas coisas?
Os
três se entreolharam.
-Depressa!
Um
dos guardas catucou-os com o cano da submetralhadora e se levantaram
rapidamente. Enquanto caminhavam, o mais falaz dos três esclarecia porque
haviam disparado tiros contra eles:
-Já
fomos atacados por um grupo. Pensávamos que eram ladrões. E procuramos
afugenta-los. Deus nos livre de trocar tiros com a polícia.
-Não
viram os uniformes?
-Era
impossível distingui-los. E confundimos a tropa com os larápios.
Revista
dedicou várias páginas para narrar o trabalho da Polícia Marítima de Santos.
Clique para ver maior.
O
tenente Manuel Jorge observava, enquanto penetrávamos na mata.
-Os
larápios foram varridos do cais e se refugiaram nas ilhas. Os últimos.
-E
os três rapazes?
-Creio
que falam a verdade. Devem ser desertores.
Chegamos
ao local da mata que lhes servia de abrigo contra as chuvas, o sol e o vento,
uma espécie de buraco na vegetação tropical.
Além
das armas já descarregadas, maços de cigarro, mantimentos, garrafas de
conhaque. Nenhum objeto que revelasse uma quadrilha de ladrões ou
contrabandistas foi encontrado.
-Uma
pergunta, Dr. Sêco.
Dissemos-lhe
na viagem de volta
-Quantas
quiser.
-Como
souberam que nessa ilha se encontravam os desertores?
-O
serviço de investigações dirigido pelo Aldo Siciliani nos informou.
Ficamos
sabendo, então, que a Polícia Marítima do Dr. Sêco mantém, nos navios, na zona
portuária, em todos os pontos vitais do litoral paulista, perfeita rede de
observadores. Sabe-se quando chega um estranho neste ou naquele ponto, quando
viajará para Santos um contrabando volumoso, quando de Santos alguém tenciona
despachar mercadorias roubadas. Convém observar que até nos lupanares, cabarés
e Em outros lugares estratégicos a rede do dr. Sêco funciona admirávelmente.
Vejam o seguinte episódio no qual convencionaremos intitular:
A
revista dedicou várias páginas para narrar o trabalho da Polícia Marítima de
Santos
Cocaína
para os grã-finos
As
autoridades de Santos verificaram que o grosso do contrabando de entorpecentes
é de cocaína. E quase toda cocaína se destina a uma certa parte de grã-finos
paulistas. O preço da grama alcança, em algumas épocas, 500 cruzeiros,.daí
transformar-se num negócio interessante, apesar dos riscos. Toda a luta da
Polícia Marítima e aérea conseguiu decrescer fortemente o tráfico do “pó dos
deuses”, Mas não é possível anula-lo completamente: a cocaína é facilmente
transportável, no salto de um sapato, na costura de um vestido, e o problema é
quase insolúvel. O controle é feito através dos agentes dos contrabandistas em
Santos, que remetem a cocaína para São Paulo, onde é vendida instantaneamente.
No
dia seguinte ao desembarque na ilha em que se encontravam os desertores, a
Polícia marítima recebeu certas informações a respeito da chegada de
entorpecentes num barco vindo dos mares da China.
O
navio dos chineses
A
abordagem ao barco chegado de tão longe foi feita em pleno mar, de surpresa.
Não houve a menor resistência. O nome da embarcação será mantido em segredo, a
pedido do Dr. J.J. Cruz Sêco, até que as
diligências em terra cheguem a bom termo. Os chineses foram revistados da
cabeça aos pés, como também os seus pertences. Treinados nessas buscas, os guardas-marítimos
vararam o navio de ponta a ponta – E a bem da verdade se informe que não se
encontrou uma grama de cocaína ou qualquer outro entorpecente.
–
Está tudo tão direitinho – disse-nos Aldo Siciliani, o chefe das investigações
– que não estou contente.
Na
mesma noite, uma rapariga, a Gauchinha, telefonou para a Polícia Marítima
avisando que um tripulante europeu queria lhe pagar os favores com uma grama de
cocaína. Imediatamente o rapaz foi detido. Negou de todas as maneiras.
–
Disse aquilo de brincadeira. Não tem cocaína!
–
Vamos fazer uma busca em regra.
–
Podem fazer até exame de saúde.
De
fato a inspeção nada revelou e o tripulante teve de ser solto. Dois dias
depois, anunciava-se, em sigilo, o aparecimento de mais cocaína na praça de
Santos. O tripulante fora seguido e, após despistar com êxito os rapazes do Dr.
Sêco, acabara por descuidar-se e toda a quadrilha caiu nas mãos da Polícia
Marítima.
Metralhadoras,
cassetetes, fuzis, contra a sabotagem
A
Polícia Marítima fazendo a vigilância na Ilha Barnabé, prevenindo contra
sabotagens. Santos vivia momentos de tensão, reflexo dos tempos de Guerra Fria
O
raio de ação da Polícia Marítima e Aérea é toda a faixa litorânea de São Paulo,
mas suas atribuições parecem ilimitadas. O comandante desfruta, na cidade
Santos, do prestígio de uma alta autoridade, graças ao equilíbrio de suas
atitudes e a energia que emprega em certas horas. Por exemplo, quando estávamos
na ilha Barnabé, da Companhia Docas de Santos, onde se encontra todo
combustível da cidade (uma explosão destruiria Santos) o encarregado quis
invocar princípios de autoridade e acabou preso, na lancha. O comandante se
penalizou, mais tarde, e libertou-o.
A
Polícia Marítima fazendo a vigilância na Ilha Barnabé, prevenindo contra
sabotagens. Santos vivia momentos de tensão, reflexo dos tempos de Guerra Fria.
A
defesa de Santos contra atos de sabotagem é feita, em grande parte, pelos
rapazes do dr. Sêco. A ponte pênsil,Extraordinária importância estratégica, os
depósitos de explosivos e inflamáveis, o cais, permanecem sob a vigilância
atenta desses trezentos homens, um efetivo reduzido, para tais serviços. E aí
existe um grupo de choque, comandado pelo Tenente Mário de Vincenzi Júnior,
campeão de tiro da América do Sul (corta o fio de um bigode a 50 metros. Quem
duvide, apresente-se à sede da corporação, em Santos). Esse grupo se destina a
dissolver comícios comunistas. Seus componentes vivem como lobos, solitários.
Quase não mantém contato com o mundo exterior, praticando ginástica e
exercícios violentos. Quando há necessidade, De Vicenzi os solta, de cassetete,
com ordem de só atirar em defesa própria. Já morreu um deles: José Cirilo. Os
outros usam, no ombro, um distintivo com o nome do companheiro morto.
O
mesmo De Vicenzi comandou a abordagem ao “Whinduk”, navio alemão, durante a
guerra. Na escada, um germânico enorme gritou:
–
Kamarade!
E
dormiu o sono que produz uma coronhada fuzil. De Vicenzi chegou ao camarote do
comandante e sussurrou:
–
Kamarade!
O
comandante abriu e dormiu tambem. Meios certamente violentos, mas que o Dr. J.
J. Cruz Sêco procura suavizar, ordenando que ninguém seja mantido preso ilegalmente.
Às vezes, ele abusa também. Foi assim no caso do presidente Dutra, antes de sua
chegada. Sabendo que ia ser feita uma homenagem negativa pelos comunistas ao
presidente, O dr. Sêco não teve dúvida: Mandou prender todos os suspeitos,
mesmo de tonalidade esmaecida, e só os libertou após o regresso do presidente.
Houve
uma onda de protestos, porque advogados, médicos, gente de todas as classes
sociais haviam ido parar no xadrez, mas o perigo fora debelado.
Tal
é a corporação que está varrendo no Porto de Santos – o Porto de Guerra do
Brasil – as três ameaças: roubo, contrabando e comunismo.
–
Não creio que atualmente o número de vermelhos em Santos vá além de cinco mil,
informa o dr. Sêco. E antes, passava dos cem mil. Quanto ao roubo e ao
contrabando, basta dizer que há cinco anos, o Instituto de Resseguros do Brasil
pagava 40 milhões de cruzeiros ao comércio importador, e hoje não chegam a um
décimo.
Fonte:
Memória Santista
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