A
qualificação do porto organizado como bem público
O
art. 2o, I, da MP no 595 definiu o porto organizado como “bem público
construído e aparelhado para atender a necessidades de navegação, de
movimentação de passageiros ou de movimentação e armazenagem de mercadorias, e
cujo tráfego e operações portuárias estejam sob jurisdição de autoridade
portuária”.
A
diferença em relação à definição anterior, constante da Lei no 8.630, revogada
pela MP no 595, é precisamente a qualificação do porto organizado como um “bem
público”.
Seriam
possíveis duas interpretações para essa expressão. Se tomada em um sentido
econômico, não jurídico, poderia significar que o porto organizado consiste em
um conjunto de elementos que realizam uma finalidade de interesse coletivo.
Assim, ainda que composto por bens integrantes do patrimônio particular, o
porto organizado teria uma destinação pública.
Isso
confirma que as concessões e arrendamentos – ou, em tese, quaisquer outras
formas de exploração que fossem admitidas – no âmbito do porto organizado
somente poderiam ter como finalidade interesses coletivos. Seria a confirmação
de que, no âmbito do porto organizado, não têm lugar terminais de uso privado
ou outros instrumentos para a realização de interesses privados no setor
portuário.
A MP
595 reservou o porto organizado como referência geográfica para a prestação dos
serviços públicos portuários. É inegável que a MP 595 tentou afastar-se da
noção de serviço público portuário ao eliminar qualquer alusão a terminais de
uso público ou privado – ou seja, não mais definindo os terminais a partir de
sua destinação ou missão, mas de sua localização e titularidade da área em que
são instalados.
Pode-se
supor que haverá interpretação, equivocada em face dos arts. 22, XII, “f”, e
175 da Constituição, no sentido de que a MP 595 extinguiu o serviço público
portuário. No entanto, com todo o respeito aos seus possíveis defensores, essa
interpretação ignoraria uma premissa fundamental da Constituição. Nos termos do
art. 22, XII, “f”, os portos são explorados mediante autorização, concessão ou
permissão.
A MP
595 deixa claro que o regime de autorização se aplica aos terminais fora do
porto organizado, como os terminais de uso privado (art. 8o), submetendo a
exploração nos portos organizados a concessão ou arrendamento. Portanto, o
regime geral aplicável às atividades portuárias no âmbito do porto organizado é
o de concessão ou, eventualmente, permissão de serviços públicos. Ambos são
instrumentos de prestação de serviços públicos, na forma do art. 175 da Constituição.
Ademais,
a MP 595 não elimina (nem poderia) a vinculação direta entre a atividade
portuária e finalidades e valores fundamentais da Constituição; jamais poderia
conduzir à eliminação da responsabilidade estatal sobre a realização dos
serviços portuários – que é precisamente o que significa a condição de tais
serviços como públicos.
Assim,
a conclusão de que o serviço público portuário foi extinto seria apressada e
não daria a devida atenção às determinantes constitucionais que estabelecem as
bases do marco regulatório do setor portuário.
De
volta à interpretação da previsão de que o porto organizado é um “bem público”,
se tomada essa expressão em seu sentido jurídico, a expressão tem consequências
que vão muito além do estabelecimento da finalidade pública do porto
organizado. A qualificação legal de um bem como público implica a sua incorporação
ao patrimônio estatal.
Em
grande parte, os bens que integram os portos organizados já são bens públicos
federais, especialmente terrenos de marinha (art. 20, VII, da Constituição),
ocupados pela União ou cujo uso é outorgado a particulares mediante enfiteuse
(aforamento). Mas outros são particulares, objeto de domínio privado. No regime
da Lei no 8.630, aludia-se expressamente à existência de bens privados no porto
organizado. Sob a MP no 595, essa possibilidade não existe mais.
Não
existe nenhuma razão para não se compreender o art. 2o, I, da MP no 595 em seu
sentido jurídico. Assim, é razoável concluir que o dispositivo tornou públicos
todos os bens existentes no âmbito do porto organizado destinados às
finalidades previstas no dispositivo legal.
Como
já tive a oportunidade de afirmar em artigo publicado na edição no 70 do
Informativo Justen, Pereira, Oliveira & Talamini (www.justen.com.br), a MP
no 595 baseou-se fortemente na noção de porto organizado, reconhecendo-o como
um centro de referência para os serviços portuários.
Fundou
nesse conceito a distinção entre os terminais públicos, arrendados ou
concedidos no âmbito do bem público “porto organizado”, dos terminais de uso
privado. Por isso, o bem público só se pode destinar ao uso “não-privado” –
vale dizer, ao “uso público”, expressão evitada pela redação da MP no 595 mas
cujo conteúdo está traduzido na definição legal de porto organizado.
A
qualificação do porto organizado como “bem público” confirma e aprofunda essa
conclusão.
Sem
se levar em conta a possível invalidade da MP no 595 pela ausência de
relevância ou urgência na matéria por ela veiculada, esta espécie legislativa
pode ser o instrumento adequado para essa publicização de bens. Trata-se de
instrumento com força de lei. A desapropriação de bens deve ter fundamento em
lei e ser baseada numa declaração realizada por meio de lei ou decreto. Sob
esse ângulo, a MP no 595 não parece insuficiente.
Também
não tem relevância o fato de a definição da área do porto organizado (art. 2o,
II, da MP no 595) ser realizada por ato do Poder Executivo (decreto). Nas
desapropriações em geral, o ato expropriatório é veiculado por decreto.
Assim,
a qualificação de “bem público” dada ao porto organizado pode implicar a
expropriação das áreas particulares nele existentes, a fim de que sejam
incorporadas ao patrimônio público e exploradas por particulares apenas
mediante algum dos atos de atribuição desse direito.
Ao
mesmo tempo em que declara o caráter público do bem consistente no porto organizado,
a MP no 595 prevê que os instrumentos para a habilitação de particulares para
nele desenvolver atividades são a concessão (do porto) e o arrendamento (de
instalações portuárias). Ambos os instrumentos pressupõem a natureza pública do
bem a que se referem. Confirmam que o porto organizado somente pode ser um bem
público.
No
artigo já referido, examinei o conteúdo dos arts. 50 e 51 da MP no 595,
especialmente no que se refere à adaptação de terminais autorizados hoje
situados na área do porto organizado. Indiquei que a interpretação desses
dispositivos não permite concluir que haja garantia legal de continuidade de
funcionamento de tais terminais, inclusive diante da ineficácia do art. 51 da
MP no 595.
Em
especial, afirmei que “Com relação aos terminais de uso privativo existentes
dentro dos portos organizados, a adaptação possível poderia ser a licitação do
terminal, para que seja submetido ao mesmo regime dos demais terminais
arrendados dentro de cada porto organizado – como já referido em tópico
anterior.
O
art. 50 da MP 595 não parece permitir a mera aceitação dos terminais de uso
privativo existentes dentro das áreas do porto organizado, com a possibilidade
de uma sucessão ilimitada de prorrogações por 25 anos” (item 2.17, parte
final).
Essa
conclusão é também confirmada pelo caráter de bem público do porto organizado.
Não se concebe que o uso de um bem público possa ser detido indefinidamente por
um
particular.
O princípio republicano impede a eternização do desempenho de funções públicas
ou da exploração de um bem público por um particular. E a clara definição das
finalidades públicas do porto organizado impede o desvio de destinação para
atender a interesses puramente privados de um particular que venha a
explorá-lo.
Assim,
a nova qualificação do porto organizado como bem público implica a
impossibilidade de sobrevivência da exploração puramente privada das
instalações nele situadas. No caso das instalações integralmente situadas em
terreno de marinha, objeto de enfiteuse, não há mudança relevante quanto à
titularidade do bem.
Mas
há quanto à sua destinação, já que não mais se admite – após a qualificação do
porto como bem público – a exploração para finalidades estritamente privadas.
No caso de instalações total ou parcialmente situadas em áreas privadas, a
mudança é tanto de destinação quanto de titularidade.
Evidentemente,
essa declaração da qualificação do porto organizado como bem público não
elimina o direito dos particulares, proprietários de imóveis situados na área
do porto organizado, à justa e prévia indenização em dinheiro, segundo o mesmo
regime aplicável à desapropriação.
Também
se pode cogitar de mecanismos para a submissão de tais instalações a uma
adaptação (na forma do art. 50 da MP no 595) mediante sua licitação para
exploração em regime de arrendamento – com os prazos, direitos e obrigações
pertinentes à exploração do bem com a finalidade pública que a MP no 595 lhe
pretendeu atribuir.
Em
uma licitação realizada para esse fim, pode-se prever que o vencedor (novo
arrendatário) indenizará o antigo proprietário pela expropriação produzida pela
MP no 595. Será um modo de promover a adaptação de tais instalações ao novo
regime (de arrendamento) aplicável à exploração de instalações portuárias
dentro do porto organizado.
Uma
vez que o instrumento típico de exploração de tais áreas privadas é a
autorização, sujeita às alterações normativas supervenientes na forma do art.
47 da Lei no 10.233, não se cogitaria de algum direito adquirido à exploração
em si. Porém, cabe ressalvar que, havendo direito adquirido, este não poderá
ser atingido pela lei nova por força do art. 5o, XXXVI, da Constituição. A
aplicação da nova regra não elimina a necessidade de respeito à propriedade e
ao direito adquirido.
Em
conclusão, percebe-se que a previsão do art. 2o, I, da MP no 595 tem múltiplas
implicações. Confirma a destinação pública do porto organizado. Assegura os
instrumentos para que essa finalidade pública não seja uma declaração vazia,
mas possa ser efetivamente perseguida e possibilite a uniformização do regime
de exploração de instalações portuárias no âmbito de cada porto organizado.
Publicado
orginalmente no site www.justen.com.br - Por
Cesar A. G Pereira
Fonte:
Canal Aduaneiro
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