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LEGISLAÇÕES

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

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O USO DE ALGEMAS

LEIS E LEGISLAÇÃO


Ainda pairam muitas dúvidas sobre o uso de algemas, e com receio da utilização do seu uso, muitos deixam de utilizá-la, se expondo ao miliante.




No intuito de refrear abusos relacionados com o emprego de algemas em pessoas presas, o Supremo Tribunal Federal – STF, em sua composição plenária, por unanimidade, em sessão realizada em 13.08.08, editou a Súmula Vinculante nº 11, com o seguinte texto: ”Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”.
É certo que, em casos concretos, tem havido realmente o desvirtuamento do emprego de algemas, especialmente quando a pessoa presa tem poderio econômico ou político ou ainda quando se trata de crime que trouxe repercussão na mídia, constatando-se a indevida exibição da pessoa presa como se fosse uma espécie de troféu a demonstrar a eficiência (verdadeira ou aparente) do aparato de segurança pública.
Nesse sentido, a preocupação básica do STF é relevante: dar concreção aos direitos do preso, em especial o direito ao resguardo de sua dignidade humana e de sua intimidade.
Contudo, dada a abrangência e o teor da súmula em referência, e tendo em vista ainda as circunstâncias em que se deu sua edição, alguns problemas práticos podem surgir de sua aplicação, trazendo insegurança jurídica e diminuição da segurança dos envolvidos na execução de prisões e na realização de atos envolvendo réus presos.
Inicialmente, eis um apanhado dos precedentes recentes do STF sobre o tema.
No HC 89.429 (1ª Turma - Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 28.08.06), um Conselheiro do Tribunal de Contas de Rondônia que estava preso buscava não ser algemado por ocasião de sua condução da carceragem da Polícia Federal em Brasília ao Gabinete de uma Ministra do STJ, onde seria ouvido, bem como em outros atos judiciais, e também não ser exposto a exibição para as câmeras de imprensa. Isso porque, por ocasião da prisão, o paciente teria sido algemado em sua residência e submetido a achincalhe mediante exposição à imprensa de todo o país. A liminar requerida foi concedida, para garantir ao paciente o direito de não ser algemado por ocasião de sua oitiva no STJ. No mérito, reconheceu-se seu direito de não ser algemado por ocasião de outros transportes que viessem a ser feitos, a não ser em caso de reação violenta. Dois “habeas corpus” com fundamentos idênticos foram impetrados pelos co-réus, um Procurador de Justiça (HC 89.419) e um Desembargador (HC 89.416), encontrando desfecho semelhante.
No HC 91.952 (Plenário – Rel. Min. Marco Aurélio - j. 07.08.08 – votação unânime), anulou-se um julgamento efetuado pelo Júri Popular da cidade de Laranjal Paulista em 2005, porque o réu, um pedreiro acusado de homicídio, ficou algemado durante a sessão de julgamento. O principal fundamento para a decisão foi a potencial influência da visão do réu algemado sobre os jurados, que, leigos que são, poderiam fazer um pré-julgamento e entender que o réu era culpado. Afirmou-se ainda, na ocasião, não existirem dados concretos que pudessem indicar que, pelo perfil do acusado, houvesse risco aos presentes, caso ele permanecesse em plenário sem algemas, razão pela qual se considerou aviltada sua dignidade humana.
Foi justamente durante esse julgamento que o Tribunal deliberou elaborar a súmula vinculante ora comentada.
Há ainda duas decisões mais antigas sobre o uso de algemas, quando a composição do Tribunal era completamente diversa: no HC 71.195 – 2ª Turma – Rel. Min. Francisco Rezek, j. 25.10.94, decidiu-se que o emprego de algemas em plenário do Júri não constituiu constrangimento ilegal porque, no caso concreto, a medida se revelou imprescindível à ordem dos trabalhos e à segurança dos presentes, porque havia informações de que o réu pretendia agredir o juiz-presidente e o promotor de justiça; e no RHC 56.465 (2ª Turma – Rel. Min. Cordeiro Guerra, j. 05.09.78), entendeu-se que o uso de algemas em audiência para inquirição e testemunhas é justificado para se evitar a fuga do preso e para preservar a segurança das testemunhas, inserindo-se a decisão no âmbito da condução pelo juiz dos trabalhos desenvolvidos na audiência.
Analisando-se os precedentes do STF sobre o tema, bem como o que foi discutido na sessão em que se aprovou o texto da Súmula Vinculante nº 11, verifica-se que as preocupações maiores se relacionam com a divulgação da imagem do réu algemado, principalmente na execução de prisões em flagrante e ordens de prisão preventiva ou temporária. Vem logo à mente o caso de réus de “colarinho branco”, que não costumam reagir fisicamente à prisão. Fica claro que o que se evita é o sensacionalismo estimulado pelos órgãos de imprensa na cobertura jornalística da prisão de certas pessoas, que não são clientes habituais do sistema de justiça criminal. É importante ressaltar que o STF acertou ao coibir com veemência o sensacionalismo – e essa observação vale tanto para a criminalidade de “colarinho branco” quanto para a criminalidade “dos pobres” – eis que o direito de informar, titularizado pelos órgãos de comunicação social, não pode suplantar o direito à intimidade e à imagem do preso.
Em outro plano, preocupou-se o STF com a possibilidade de indução de jurados, no Tribunal do Júri, a uma condenação.
Finalmente, na sessão de aprovação do texto da Súmula Vinculante nº 11, demonstrou também o Tribunal preocupação com a colocação de algemas em réus presos nas audiências realizadas no juízo criminal comum. Exposta a questão, algumas observações podem ser feitas.
Toda prisão de um ser humano viola a sua dignidade, pois o estado de liberdade é natural e a prisão de um ser humano é anti-natural. No entanto, desde que a prisão em questão (que é o mais) seja amparada em lei, o que se admite em casos excepcionais para o bom desenrolar do processo penal, não se justifica a vedação do emprego de algemas (que é o menos).
Uma vez feita a prisão sem alarde, entendemos, com o acato e o respeito devidos à decisão do STF, que não há razão para se estabelecerem tamanhas restrições e sanções ao uso de algemas, de forma apriorística e sob a forma de uma súmula com caráter vinculante. Estando preso o investigado, réu ou condenado, a regra é a de que ele se submeta, como consectário natural de tal situação, à privação de liberdade, com todas as conseqüências daí decorrentes, o que é autorizado pela Constituição da República e pelas leis de nosso país.
Assim, a colocação de algemas por ocasião da prisão; o transporte do preso com algemas até o presídio; o transporte do preso algemado do presídio ao Fórum, Instituto Médico-Legal (para exames de corpo de delito “ad cautelam”, de insanidade mental) e vice-versa; a manutenção das algemas durante as audiências (o caso do Júri merece considerações que seguirão adiante); a condução do preso ao local em que se fará a reconstituição simulada do crime (desde que com o seu consentimento); entendemos que todos esses atos são lícitos e compatíveis com o estado de cerceamento de liberdade legalmente imposto à pessoa em questão. Quanto à suposta suscetibilidade dos jurados a influências, tema enfrentado pelo STF no julgamento do HC 91.952, que deu origem à Súmula Vinculante, decidiu-se pela anulação do processo, buscando-se evitar que os jurados, leigos que são, ficassem induzidos a imaginar que o réu que é apresentado algemado é o autor do crime em julgamento.
Aqui, algumas ponderações são cabíveis, mais uma vez destacando-se nosso respeito à decisão do STF. Em primeiro lugar, a Constituição da República – bem ou mal – deu aos cidadãos, ainda que leigos, a importante e grave tarefa de julgar seus semelhantes, em certas modalidades delituosas (crimes dolosos contra a vida), instituindo-se, em lei ordinária, requisitos precisos e específicos para se verificar a capacidade concreta desses cidadãos-julgadores para a participação no julgamento (alfabetização; idade mínima; ausência de suspeição e impedimento; e idoneidade).
Em segundo lugar, a Constituição da República deu aos jurados a soberania para efetuar os julgamentos de tais crimes (art. 5º, XXXVIII). Decorrência dessa soberania é que seus veredictos não precisam (e não podem) ser fundamentados, entendendo o legislador constituinte que os jurados podem decidir até mesmo contra a prova dos autos. Justamente por isso, é impossível, sem a realização de estudos científicos, empíricos, afirmar que os jurados decidiram pela condenação ou pela absolvição movidos por essa ou aquela circunstância.
Em terceiro lugar, os jurados, embora leigos, não decidem com base na visualização do réu, mas sim com base na análise exaustiva dos elementos de convicção que lhes são apresentados horas a fio por profissionais (promotores de justiça e advogados) especializados em transmitir e explicar ao conselho de sentença a prova dos autos e as regras e princípios constitucionais e legais referentes ao caso em análise. Tudo isso sob o olhar vigilante do juiz-presidente, que poderá fazer aos jurados esclarecimentos tendentes a evitar possíveis induções por parte dos oradores.
Com isso, quer-se dizer que os jurados merecem não ter sua inteligência e capacidade de compreensão tão posta em dúvida. A se adotar o raciocínio de que os jurados se influenciam pelo emprego de algemas, o que dizer da visão dos presos – ainda que não algemados – que são apresentados para a sessão de julgamento vestidos com roupas brancas (o que ocorre para rápida identificação dos agentes penitenciários, em caso de tumultos e fugas nos presídios)? A julgar pelo conceito que se faz dos jurados, em breve surgirá entendimento de que eles ficarão induzidos a condenar os réus sem algemas, mas vestindo roupas brancas. Isso sem contar que, naqueles casos em que o réu demonstrar concretamente alguma periculosidade, tendo ameaçado, por exemplo, agredir o juiz (cabendo aí, sem dúvida, o emprego de algemas, mesmo diante do rigor da Súmula Vinculante nº 11), sua condenação será praticamente certa, pois, na mente dos jurados – que, pelo visto, presumem-se ingênuos e facilmente influenciáveis –, doravante só ficará algemado o réu “culpado” (“perigoso, logo algemado; algemado, logo culpado”).
Prosseguindo, no caso de procedimentos não afetos ao Júri, não se entende o porquê de se ter feito a previsão, no enunciado da Súmula Vinculante nº 11, da sanção de nulidade dos atos processuais praticados com o investigado ou réu algemado, dentre eles a prisão em flagrante; a execução de ordem de prisão temporária ou preventiva; a presença em audiência para oitiva de testemunhas, vítimas e peritos e para interrogatório; a reconstituição simulada de crime; o comparecimento a Instituto Médico-Legal para exame de corpo de delito “ad cautelam”, de dependência toxicológica ou de insanidade mental; e a presença em local no qual será realizada reconstituição simulada do crime. É incompreensível que tais atos processuais sejam anulados, só porque o preso estava algemado.
Isso porque – fora dos casos de Júri, para quem sustenta que os jurados podem condenar com mais facilidade uma pessoa algemada – não há qualquer relação entre a prova produzida e a colocação de algemas no réu. Ou seja, ainda que, em casos concretos, o uso de algemas seja indevido, nem por isso haverá influência na aquisição da prova sobre autoria e materialidade da infração penal, tipicidade e ilicitude da conduta praticada e na culpabilidade e punibilidade do autor do crime, no exercício do contraditório ou da ampla defesa ou na formação do convencimento do Juiz. Se o crime não for doloso contra a vida, o julgamento será feito por um bacharel em Direito (juiz togado) que sabe que o fato de o réu estar algemado se deve à circunstância de ele ter sido preso cautelarmente, não se presumindo sua culpabilidade.
Prevê a súmula que, se houver emprego indevido das algemas, a autoridade responsável responderá penal, civil e administrativamente por seus atos, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado. No entanto, a Súmula, se não trouxe aqui nada de novo (e neste ponto não cabe a crítica ao STF no sentido de que teria “legislado, criando Direito novo”), também em nada contribuiu para esclarecer situação fática polêmica ou para interpretar a legislação existente a respeito, que é clara. É que, tendo havido constrangimento ilegal, no caso concreto (por exemplo, com exposição do preso à execração pública, o que é indevido), bastam as leis já em vigor prevendo a responsabilização da autoridade responsável pelo mau uso das algemas, quer no plano penal (o crime de abuso de autoridade é tipificado na lei n. 4.898/65), quer no plano da responsabilidade civil (a obrigação do Estado de reparar danos está prevista na Constituição da República, art. 37, § 6°), quer ainda na seara da responsabilidade administrativo-disciplinar (conforme disposto na lei n. 8.112/90 e leis orgânicas das carreiras jurídicas).
Mais um aspecto deve ser considerado. Como se vê, dentre os requisitos constitucionais para a edição da súmula vinculante (art. 103-A da Constituição, com redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/04) está a existência de decisões “reiteradas” sobre matéria constitucional. Como se viu acima, as decisões sobre o assunto são poucas, e, além disso, não parece muito claro o requisito legal da “controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão” – art. 2º, § 1°, da Lei n. 11.417/06, que regulamentou a edição de súmulas vinculantes.
Acrescente-se que, diante da grande repercussão prática que terá a súmula no funcionamento e na administração do sistema de justiça criminal, seria interessante (embora não obrigatório), no plano da legitimidade social do teor da Súmula, que se permitisse a “manifestação de terceiros” sobre o assunto, antes da edição do enunciado. É verdade que o Ministério Público, representado pelo Procurador-Geral da República, foi ouvido previamente pelo STF sobre o tema, o que é exigência legal, art. 1º, § 2°, da Lei n. 11.417/08, manifestando, na ocasião, preocupação em relação à efetividade da execução de prisões. Ocorre que não houve a manifestação da Polícia Civil, da Polícia Militar, da Polícia Rodoviária Federal ou da Polícia Federal, nem das associações de proteção aos direitos humanos, OAB, entidades de defesa dos direitos de vítimas ou Ministério da Justiça, na qualidade de interessados (“amicus curiae”) sobre o tema, na forma do art. 3º, § 2°, da Lei n. 11.417/08, para que pudessem contribuir para o debate. Ressalte-se que tal providência tem sido adotada de forma elogiável e democrática pelo STF em casos polêmicos como o da constitucionalidade da Lei de Biossegurança – ADI 3.510 (embora não em contexto de aprovação de Súmula Vinculante), experiência que poderia ter sido aproveitada para o caso em questão.
Outra providência que poderia ter sido adotada com proveito pelo STF é a modulação dos efeitos da Súmula Vinculante nº 11 no tempo, o que é permitido pelo art. 4º da Lei n. 11.417/08, “por razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público”. É que, da noite para o dia, passou a ser proibido, como regra, o que era corriqueiramente permitido em audiências e execução de prisões em todo o país (não se refere aqui aos abusos, à prisão-espetáculo, mas à mera colocação discreta de algemas em pessoas que, ressalte-se, já estavam ou passaram a estar presas).
Como se não bastasse, diante do teor da Súmula Vinculante, algumas questões práticas e de extrema seriedade, irão logo surgir.
Com efeito, as pessoas que cotidianamente ou esporadicamente freqüentam os fóruns das cidades brasileiras, para requerer certidões, atender a audiências cíveis, de família, de fazenda pública e outros assuntos em nada relacionados com o crime, passarão a circular em um ambiente permeado por pessoas que, embora presas, não estarão, em regra, algemadas, com os riscos decorrentes dessa situação.
Outro ponto: conhecendo a realidade precária dos serviços penitenciários e policiais no Brasil, dificilmente as algemas poderão ser substituídas pelo reforço na escolta. Para cada pessoa presa, deve haver pelo menos dois policiais em sua guarda, isso se for considerado que o custodiado está algemado. Hoje os serviços penitenciários e policiais já têm dificuldades imensas em atender a tais regras de segurança. Se o custodiado a partir de agora tiver que ser escoltado sem algemas – essa será a regra quase absoluta, a julgar pelo teor da súmula vinculante –, certamente a proporção de guardas por custodiado terá que aumentar, o que levará a inúmeros cancelamentos de audiências por falta de escolta. Quanto ao aumento do efetivo para as escoltas, sabe-se que não é problema que se soluciona com celeridade e que o próprio Judiciário vem resistindo a interferir na implementação das políticas públicas a cargo do Poder Executivo (e o aparelhamento dos órgãos de segurança pública integra as políticas públicas nessa área), pois o entendimento predominante é o de que tal providência violaria a separação das funções (ou poderes) executiva, judiciária e legislativa.
De se ressaltar ainda que, se o objetivo da edição da Súmula foi o de amenizar a insegurança jurídica envolvendo o tema do emprego das algemas, dificilmente tal meta será alcançada. É que os critérios jurídicos estabelecidos na Súmula para que seja considerada “justificada a excepcionalidade” do emprego de algemas são subjetivos ao extremo, sendo eles:
a) resistência; ou
b) fundado receio de fuga; ou
c) fundado receio de perigo à integridade física própria (do preso) ou alheia (de pessoa não presa e que esteja ao seu alcance), perigo este proporcionado pelo preso ou por terceiros (seus comparsas, por exemplo, que possam lhe dar fuga ou tentar um resgate). O caso da resistência é o único que não comportará maiores problemas, pois se trata de uma situação a ser aferida de modo objetivo.
No entanto, o “fundado” receio de fuga ou de perigo à integridade física de qualquer pessoa é aspecto nebuloso e de apreciação subjetiva. Será que o STF aceitará que a pessoa presa ou que deva ser presa seja algemada com base exclusivamente na natureza do crime (nesse contexto, assaltantes, latrocidas e homicidas poderiam ser sempre algemados ainda que bem comportados durante o processo, ao passo que estelionatários não), ou será exigido, para a colocação de algemas no preso (ainda que por crime violento) uma conduta concreta demonstrando “periculosidade” (exemplo: o réu que olha de forma ameaçadora para a vítima em audiência)? E mais: tendo em vista o inato desejo de liberdade do ser humano, será que não haveria fundado receio de fuga em toda execução de uma prisão (em flagrante ou não), e mesmo em toda situação na qual o preso vislumbre a possibilidade de fuga (por exemplo, em uma audiência judicial à qual comparece escoltado)?
O STF parece ter se inspirado nos textos do art. 284 do CPP (“Não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso”) e do art. 292 do CPP (“Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”), para exprimir as hipóteses de permissão do uso de algemas. Aqui, a expressão “emprego de algemas” foi utilizada como exemplo de “emprego de força”. Nesse particular, não houve inovação na ordem jurídica por parte do STF, já que se trata de mera explicitação, pelo Tribunal, de regra já existente. A inovação, ao nosso sentir, houve no que tange à sanção de nulidade da prisão ou ato processual praticado com colocação de algemas, eis que, repita-se, não há qualquer conexão entre o fato de o preso estar algemado e os seus direitos à ampla defesa, ao contraditório e à produção probatória defensiva. E quanto à anulação de atos processuais (audiências, perícias, reprodução simulada de crimes ou outros), deve-se ter em mente que nem o art. 284 nem o art. 292 do CPP tratam de tais hipóteses (restringindo-se a abordar o momento da execução da prisão).Em qualquer caso, segundo o enunciado da súmula em questão, a excepcionalidade deverá ser justificada por escrito. Quanto a isso, pergunta-se: para cumprir o requisito de validade do ato processual previsto na súmula vinculante (justificação por escrito da excepcionalidade do uso de algemas), será necessário que o diretor do presídio, antes de efetuar o deslocamento do preso à audiência judicial, comunique ao juiz, por ofício, de forma fundamentada, em cada um dos milhares de transportes diários que são feitos, que o traslado desse e daquele preso será feito com uso de algemas, e que o transporte daquele outro será feito sem algemas?
Como o policial que trabalha nas ruas e que cotidianamente efetua prisões em flagrante e cumpre mandados judiciais de prisão irá aquilatar, no caso concreto, a periculosidade da pessoa a ser presa, que ele nem conhece e que, por instinto natural de liberdade, pode ser capaz de reações violentas? A opção pelo uso das algemas durante a prisão terá que ser reportada por escrito, sob pena de nulidade? Em se tratando de prisão em flagrante, deverá constar do relato do condutor a justificativa para o emprego das algemas? Que justificativa será aceita para que se caracterize o “fundado receio” de fuga e de ameaça à integridade física de outrem, evitando-se que a prisão seja anulada? A gravidade em abstrato do crime? O uso de arma pelo preso na prática do delito? Sua folha penal extensa? O concurso de pessoas? A decisão sobre o emprego de algemas ficará ao “prudente arbítrio” (melhor seria dizer “prudente discricionariedade” – escolha entre indiferentes jurídicos) do policial? O que é difícil é afirmar que essa decisão do policial seja vinculada (decisão que é a única lícita admissível), dada a dificuldade de controle e aferição “a posteriori” do acerto da opção feita pelo policial, que tinha a situação concreta em suas mãos.
Na mesma linha, o juiz criminal (no júri ou não) deverá justificar, em cada termo de audiência, a razão pela qual, naquele caso concreto, o réu ficou algemado durante a audiência? Mais uma vez, fica a pergunta: basta que o crime de que seja acusado o réu se revista de gravidade abstrata ou tenha sido praticado com violência ou, diversamente, em um primeiro momento todos os réus presos devem ficar sem algemas na sala de audiências, até que dêem causa ao emprego das algemas (quando pode ser tarde demais)? Destaque-se que não só o réu, mas também testemunhas, vítimas, juízes, membros do Ministério Público, advogados (das vítimas e dos réus), pessoas do povo que acompanham a audiência ou que simplesmente circulam pelo fórum e funcionários da Justiça são protegidos pelo art. 1º, III, da Constituição da República (que prevê como fundamento da República Federativa do Brasil a dignidade humana). Além disso, a segurança pública é “dever do Estado” e “direito e responsabilidade de todos”, exercida “para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas” (art. 144, “caput”). Nesse contexto, o juiz criminal é responsável pela segurança dos presentes a uma audiência, dispondo o art. 794, primeira parte, do Código de Processo Penal que “a polícia das audiências e das sessões compete aos respectivos juízes ou ao presidente do tribunal, câmara, ou turma, que poderão determinar o que for conveniente à manutenção da ordem”.
Assim, caso o Juiz, durante a audiência, questione a escolta sobre a possibilidade de garantir a segurança dos presentes ainda que o réu preso fique ali sem as algemas, e caso a resposta seja negativa, entendemos que não haverá outra solução senão aquela consistente em os operadores do Direito que se preocupam com sua própria dignidade humana e com sua inviolabilidade física serem prudentes, recusando-se à participação no ato.
Por fim, devemos aprender com a História. Espera-se que não ocorra no Brasil algo semelhante ao acontecido em Atlanta, nos EUA, em 2005. Na ocasião, Brian Nichols, réu que era acusado de estupro e estava preso, durante seu julgamento, permaneceu sem algemas, alegadamente para não influenciar os jurados (que, nos EUA, também julgam crimes que não sejam dolosos contra a vida). Brian tomou a arma da agente de polícia que fazia sua escolta, atirando nela, em outros dois agentes de polícia, no juiz (que morreu) e em um funcionário do tribunal (que também morreu).
Em suma, pode-se concluir que:
a) a Súmula Vinculante nº 11 foi inspirada pela elogiável intenção do STF de evitar o aviltamento da dignidade humana de pessoas presas que porventura sejam expostas à exposição na mídia;
b) a súmula previu, desnecessariamente, pois já prevista em lei e na Constituição, a responsabilidade penal, civil e disciplinar de quem fizer mau uso de algemas;
c) a súmula previu, sem qualquer conexão com a coleta da prova ou com o exercício dos direitos à ampla defesa e ao contraditório, a nulidade da prisão ou de atos processuais praticados com colocação de algemas no preso;
d) debate prévio sob a forma de admissão de interessados no processo de aprovação da súmula poderia ter redundado na edição de enunciado que contemplasse as preocupações dos policiais, juízes e promotores de justiça na execução de prisões e condução de audiências com réus presos;
e) vislumbra-se grave quadro de insegurança jurídica a partir da incerteza quanto à interpretação futura das cortes a respeito de expressões como “fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física”, constante da Súmula, o que poderá acarretar anulações em série de processos; e
f) vislumbra-se quadro de periclitação da incolumidade física de pessoas que circulam pelos fóruns criminais e dos funcionários do sistema de justiça criminal, os quais são também portadores do direito à dignidade humana

Texto: Rodrigo de Abreu Fudoli - Promotor de Justiça do MPDFT - Mestre em Ciências Penais pela UFMG
Fonte: Revista Phoenix Magazine

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